O que 1973 tem a dizer a 2013?
Não foi qualquer apego a efemérides que motivou Carta Maior a reunir uma dezena e meia de analistas, personagens, cineastas e filmes para registrar os 40 anos do golpe militar de 11 de setembro no Chile.
O Especial ‘Chile de Allende, 40 anos do golpe’ não mira o passado.
Se há uma interrogação não respondida na história da esquerda latino-americana ela pode ser resumida na pergunta que se tornou incontornável, desde que os Hawkers-Hunters da Força Aérea passaram a disparar contra o La Moneda, naquela terça-feira cinzenta de 1973.
‘O socialismo pela via democrática morreu com Allende no Chile?’
A atualidade da arguição inclui nuances.
Algumas delas falam ao Brasil dos dias que correm.
Exemplos.
O que acontece em um país quando o conservadorismo forma a percepção de que as possibilidades democráticas e eleitorais de seu retorno ao poder se estreitaram?
Que contrapesos poderiam, ou melhor, deveriam ser acionados quando a judicialização da política e o golpismo midiático compõem um corredor polonês asfixiante em torno de um governo democrático e progressista?
Em que medida é realista apostar em um alicerce defensivo ancorado exclusivamente nas instituições existentes, quando o propósito é superar o que elas guarnecem?
É um primeiro indicativo.
De que não estamos falando de ontem.
Mas das evocações que 1973 inspira em 2013.
O processo chileno tem recados a dar ao governo do PT.
E aos que se posicionam à esquerda do governo do PT.
A coragem e a dignidade inexcedíveis de Salvador Allende e a de milhares de homens e mulheres que, a exemplo dele, perderam a vida e entes queridos no golpe, não estão em questão.
Mas o debate sobre os equívocos do processo e, sobretudo, a busca de alternativas, devem ser retomados à luz da nova realidade latino-americana.
Hoje ela é recortada pela emergência de um colar de governos progressistas, articulados de forma incipiente, mas em nível muito superior ao que dispunha Allende.
E, todavia, dificuldades regionais e globais já se entrelaçam a estreitar a sua capacidade de expandir as fronteiras da justiça social na região.
Allende endossou no seu cálculo político dois mitos, para o bem e para o mal, desacreditados hoje na porção progressista da América Latina.
Mas sem que se extraiam disso as consequências políticas cabíveis.
A propalada solidez de 100 anos de democracia congressual chilena; e a decantada postura profissional do Exército do país formavam a pedra angular do projeto da Unidade Popular.
O ponto de partida ensejou certa prostração do Estado e da sociedade diante da beligerância progressiva da mídia e dos interesses locais e estrangeiros, que nunca endossaram a ideia de uma transição democrática para o socialismo.
Instalou-se a partir daí uma contradição latejante no motor da Unidade Popular.
De um lado, por eleger como trilho de travessia uma institucionalidade sobre a qual nunca teve domínio. E dentro da qual jamais conseguiu construir uma maioria.
De outro, e em decorrência do anterior, por desestimular a organização de milícias operárias de autodefesa, fiel ao princípio de que um ‘exército profissional’, zelaria pela higidez do processo constitucional e popular.
À natureza bipolar da engrenagem interna viria se somar certa subestimação das determinações mais gerais de uma desordem capitalista, na qual o poder americano, fustigado por revezes, armava as garras para recompor cada centímetro de seu domínio geopolítico.
Quando Allende chegou ao poder em 21 de setembro de 1970, havia um contra-fluxo em marcha no mundo.
A luta armada contabilizava derrotas sucessivas em toda América Latina.
Ditaduras multiplicavam-se.
O choque do petróleo abalaria adicionalmente o poder americano, já corroído pelo déficit e a inflação decorrentes dos gastos militares na guerra do Vietnam.
O aparato bélico mais poderoso do mundo arrastava-se atolado em uma espiral adversa que o levaria à humilhante derrota de 1975, quando Saigon caiu nas mãos dos comunistas.
A emergência de um Chile a bordo da sedutora mescla de democracia e socialismo era o lança-chamas solto no paiol de um império inflamável e inflamado.
“Allende nacionalizou 79 grandes empresas industriais (as minas de cobre entre elas), 16 dos 18 bancos comerciais existentes, expropriou cem milhões de hectares de terra, completando-se assim o processo de reforma agrária iniciado no governo de Eduardo Frei (1964-70). Além disso, foram incorporadas às instâncias do poder, à cúpula do Estado, à administração pública e à direção das estatais representantes do povo e da classe operária. Foi o primeiro governo da história do Chile que contou com a participação de quatro ministros operários, três comunistas e um socialista. A direita não tolerou isso”.
A contabilidade histórica é feita por quem viveu tudo isso, como o segundo homem da estrutura da Unidade Popular, depois de Allende.
Luís Alberto Corvalán Lepe, (1916-2010), o lendário dirigente comunista chileno, coordenador da campanha da UP, foi entrevistado por Gilberto Maringoni em 1993.
A conversa, mantida inédita desde então, é publicada pela primeira vez neste especial de Carta Maior
Nela, o próprio Corvalán admite, porém, que a questão política pesaria ainda mais que a econômica na conflagração golpista.
A mesma percepção é endossada no texto produzido especialmente para Carta Maior pelo jornalista Martín Granowsky .
Um dos expoentes do jornal Página 12, Granowsky recupera o relato de um encontro tenso e premonitório, ocorrido em Washington , entre a delegação oficial chilena e a cúpula do Departamento de Estado norte-americano.
O governo Allende apenas se desenhava.
Henry Kissinger, presente, foi completo no seu estilo: rude, insolente, imperial e preconceituoso.
“A América Latina é uma região de quase nenhuma importância…”. começou dizendo o falcão de Nixon. “ O Chile não tem nenhum valor estratégico. Nós podemos receber cobre do Peru, Zâmbia, Canadá. Vocês não têm nada que seja decisivo. Mas se estabelecido esse projeto rumo ao socialismo, conforme Allende fala, teríamos problemas sérios na França e na Itália, onde há socialistas e comunistas divididos, que com esse exemplo poderiam unir-se. E isso afeta substancialmente o interesse dos Estados Unidos. Não vamos permitir que tenham êxito”.
Encerrou assim.
Termos ainda menos elegantes ele utilizaria um pouco mais adiante, como relata o próprio embaixador dos EUA no Chile (até agosto de 1973), Edward Kerry.
Sua entrevista no imperdível, ‘O último combate de Salvador Allende’’, documentário incluído no Especial de Carta Maior, é desconcertante.
O conjunto dos relatos indica que enquanto a Unidade Popular evocava estrito respeito à ordem democrática, um programa de desestabilização financiado pela CIA minava a sociedade e a economia em quatro frentes.
A saber: criando a sensação de caos econômico (‘fazer a economia gritar”, era a diretriz do departamento de Estado); promovendo o descrédito através dos meios de comunicações (o El Mercúrio pautava diariamente os demais veículos); seduzindo fileiras das Forças Armadas (US$ 8 milhões da CIA estavam disponíveis...) e multiplicando conflitos de rua, com atentados a cargo de grupos paramilitares.
O retrospecto enseja variados alertas de latejante atualidade.
Condenar, a priori, a desgastante busca de uma maioria parlamentar, sempre movediça e melíflua, significa entregar ao conservadorismo um território político estratégico, sem disputá-lo.
Ademais do enorme ressonância, trata-se de um poder dotado de instrumentos e legitimidade para paralisar o governo e o país.
Quantas CPIs estariam em ação hoje no Congresso, com sessões especiais transmitidas ao vivo, a exemplo do que se faz no julgamento da AP 470, no STF, se o governo não arcasse com o fardo de negociação para, ao menos, dificultar o risco de uma maioria golpista?
Sem maioria, Allende foi submetido a um esfarelante jogo parlamentar, obrigado a demitir ministros e desautorizado em inúmeros projetos e iniciativas sabotadas pelo Congresso.
Por fim, cederia também em outro terreno familiar ao processo brasileiro.
O da mídia.
Pressionado, liberou 155 rádios de integrarem o guarda-chuva da cadeia nacional.
Ou seja, sancionou uma rede de radiodifusão autônoma e golpista.
Que martelava diuturnamente a insatisfação popular, assentada num desabastecimento deliberadamente produzido.
Em 11 de setembro de 1973, ‘a economia gritava’, como ordenara Washington.
A sensação dos gritos era amplificada pela emissão do aparato midiático conservador.
A inexistência de uma estrutura popular organizada para defender o governo e a sociedade evidenciaria, então, o preço caro da aposta na democracia representativa como fiadora de uma travessia socialista.
Coube então ao general Augusto Pinochet, de forma sangrenta, reafirmar o ditado segundo o qual, a democracia eleitoral promete mais do que o sistema está disposto, de fato, a conceder.
Os textos reunidos no Especial de Carta Maior merecem leitura atenta nos sinais que emitem ao presente.
Como um velho farol solitário, o ano de 1973 lança alertas sobre os rochedos e as armadilhas que, no presente, como há quatro décadas, separam os vagalhões da terra firme. E vice versa.
Revezes históricos, seguidos de um ciclo de regressividade neoliberal, achataram o debate socialista na AL desde então.
O tempo cuidaria de lubrificar o acanhamento de uns e a rendição mercadista de outros.
Reduziu-se o socialismo a um horizonte imaginário pouco, ou nunca, articulado às ações da realidade presente.
A tese da radicalização da democracia política ocuparia esse espaço como uma legenda-ônibus, recheada da difusa intenção de atravessar um vazio estratégico sem erguer pontes para isso.
A luz intermitente do farol de 1973 parece dizer que, mesmo para quem vai devagar, é necessário ter clareza do porto ao qual se quer chegar.
E dispor de velas adequadas para isso.
Sob risco de ser tragado pelas correntes do caminho.
Postado por Saul Leblon às 05:16
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