O joio e o trigo
Em Machuca (2004), direção de Andrés Wood, estamos às portas do golpe militar de Augusto Pinochet. O padre McEnroe, diretor do tradicionalíssimo colégio Saint Patrick, decide romper a fronteira social que separa o joio do trigo. Os alunos pré-adolescentes da burguesia de Santiago passarão a estudar e a conviver com garotos que vivem na periferia. Por Flávio Ricardo Vassoler
Quando Friedrich Nietzsche (1844-1900), em sua Genealogia da Moral (1887), identifica o cristianismo como um movimento de profunda transvaloração dos valores nobres e guerreiros, estamos diante de um diagnóstico que, para dizer o mínimo, justifica a divisão de nossa era em tempos a. C. e d. C..
− Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos. (Mateus, 20, 16)
Se lançarmos tal máxima de Cristo contra a vontade de poder de Júlio César, entreveremos duas esferas de valores que parecem estar em galáxias distintas.
César é o todo-poderoso, o comandante, o guerreiro, o comandante dos guerreiros. O bem-nascido. Ser nobre equivale a ser forte. Ser forte equivale a ser o melhor. O aristocrata Júlio César olha para a massa por sobre seus ombros laureados e “naturalmente” superiores. Se todos os caminhos de fato levam a Roma, os últimos não apenas não serão os primeiros. Eles nunca serão.
Cristo é o filho do carpinteiro José, aquele que lava o pé de seus apóstolos. Aquele que procura trazer o perdão ao invés da retaliação. A transformação dos ímpetos ao invés do farisaísmo de César. Cristo não pergunta pelos mais fortes e pelos melhores. Quando o judeu Jesus Cristo rompe o sectarismo de sua época e afirma que é possível encontrar boas almas entre os gentios, isto é, entre pessoas de outros povos, não se trata de utilizar a espada de Roma para conquistar outros domínios.
Trata-se simplesmente de dizer que há bons samaritanos – e gregos e romanos. Cristo clama pelos bons. E todo aquele que procura reformar-se, segundo o Sermão da Montanha, pode redimir-se. Não há distinção pétrea de qualquer natureza. Quando se diz que os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos, estamos à beira de um cataclismo não apenas espiritual, mas, fundamentalmente, social. Não se trata apenas de renegar o poder e dizer que ele macula e corrompe. Trata-se de perceber que a sociedade é composta por todos, pelo trabalho de todos. Nessa medida, Cristo insinua que o poder deve ser plural e equitativo. A transvaloração dos valores a que Nietzsche faz menção não poderia ser mais profunda: estamos às portas do socialismo.
O breve preâmbulo que entrevê algumas afinidades eletivas entre o cristianismo primitivo e o socialismo é o contexto basilar para o filme chileno Machuca (2004), direção de Andrés Wood. Estamos às portas do golpe militar de Augusto Pinochet – golpe que, nesse 11 de setembro, completou 40 anos. O padre McEnroe, diretor do tradicionalíssimo colégio Saint Patrick, decide romper a fronteira social que separa o joio do trigo. Os alunos pré-adolescentes da burguesia de Santiago passarão a estudar e a conviver com garotos que vivem na periferia. “A partir de agora, vocês terão novos colegas de turma. Todos somos iguais, não importa a que classe pertençamos”.
Não fica claro, ao longo do filme, se o padre McEnroe é um adepto da Teologia da Libertação. Mas as suspeitas que despertam a curiosidade dos espectadores logo aguçam a ojeriza dos pais da classe média. Sem mais, os pais/provedores convocam uma reunião geral na escola para que haja o devido esclarecimento sobre o porquê da “mescla entre maças e goiabas. Veja, padre, não estamos sendo preconceituosos, não se trata disso. Mas é natural que haja diferenças, e cada qual deve conviver em seu espaço. Lé com lé, cré com cré”. O preconceito açoita quando é arremessado contra suas vítimas. Mas também é duríssimo perceber o quanto a história da exclusão identitária está incrustada em nosso olhar. A colocação aparentemente ingênua e “naturalista” da mãe burguesa traz em seu bojo toda uma história de cisões e distinções que foram tornando normais – vale dizer, normativas – as impossibilidades de convivências plurais entre as diferentes camadas da sociedade.
Nesse momento, percebemos limites claros ao cristianismo que concebe uma igualdade e uma dignidade abstratas sem que haja uma confrontação com as estruturas de poder. Para que os últimos sejam os primeiros, os primeiros precisam conviver com os últimos. E é justamente esta decorrência que faz com que o padre McEnroe socialize o espaço burguês do colégio Saint Patrick. Sem essa decisão bombástica para o Chile à iminência do golpe militar, Gonzalo, Pedro Machuca e Silvana jamais teriam se conhecido.
Gonzalo seria mais um típico estudante do Saint Patrick. Quando o periférico Pedro Machuca se torna seu colega de classe, os extremos da sociedade de classes passam a estreitar relações. Talvez seja mais fácil imaginar o deslumbramento de Machuca em meio à mansão de Gonzalo do que prever as reações do ruivinho bem nutrido ao caminhar pelas vielas de terra batida e barracos de madeira que arrimam a favela de Machuca. Ainda assim, como que a receber suas primeiras lições de sociologia aplicada, Gonzalo não se furta ao contato. O garoto fica contente com a hospitalidade da mãe de Machuca. E o interesse aumenta ainda mais quando a já adolescente Silvana o descobre por ali. Gonzalo, Silvana e Machuca formarão um triângulo escaleno para descobrir prazeres que (supostamente) desconhecem o pertencimento social.
Além de compartilharem latas de leite condensado a que o pai de Gonzalo tem acesso por percorrer os meandros do mercado negro que a burguesia mantém contra o governo de Allende, Machuca, Silvana e (como apêndice) Gonzalo vendem bandeirinhas nas manifestações políticas. Bandeirolas do Chile para os nacionalistas de direita; flâmulas vermelhas para a Juventude Comunista. Mas há um momento em que a sensibilidade do diretor Andrés Wood capta uma contiguidade entre os dois polos extremados da disputa político-ideológica. Nas manifestações dos polos opostos, há palavras de ordem distintas que, sub-repticiamente, seguem gramáticas parecidas.
À direita: “Quem não pula é comunista, quem não pula é comunista!”
À esquerda: “Quem não pula é golpista, quem não pula é golpista”.
O conteúdo, de fato, é bastante diverso. Mas a forma da disposição política e de sua articulação pública parece insinuar que as diferenças guardam mais semelhanças do que gostaríamos de admitir. Se pensarmos que, nas recentes manifestações de junho, o “quem não pular quer tarifa, quem não pula quer tarifa” era articulado tanto pelos participantes mais politizados quanto por aqueles que hostilizavam sem mais os partidos políticos e propugnavam por intervenções do exército, entreveremos um caráter algo autoritário e claramente manipulável para as estruturas de contestação; direita e esquerda, neste caso, tornam-se de fato os membros de um mesmo corpo.
Quando o golpe arranca os braços direito e esquerdo para que, sempre supostamente, haja apenas um corpo chileno, o idílio do padre McEnroe termina. O possível teólogo da libertação é afastado da direção do colégio Saint Patrick. Os pobres que lá estavam “voltam para o local de onde não deveriam ter saído”, sentencia o novo diretor/capitão do exército sob a bênção do também novo pároco devidamente alinhado com a tradição conservadora da Igreja. Mas e quanto à amizade ecumênica de Gonzalo, Silvana e Machuca?
Numa tarde em que já não havia bandeirolas a serem vendidas, Gonzalo sente saudade de Machuca, de Silvana e dos beijos regados a leite condensado. Sua bicicleta chega novamente às ruas de terra. Só que, desta vez, o toque de recolher não é dado pelos traficantes. Agora, são as armas dos soldados que fazem a triagem. Silvana já havia sido rasgada por um tiro de fuzil ao tentar defender o pai “comunista” – eis o laudo que o soldado indiferente cospe como causa mortis para a certidão de óbito que não será lavrada. Machuca chora diante do corpo inerte de Silvana – cadáver que agora delimita uma fronteira para a antiga amizade que o ecumenismo cristão tentou construir.
Que futuro têm as relações fraternas entre as classes em sociedades alicerçadas sobre a naturalidade da assimetria? O Sermão da Montanha reestrutura, nominalmente, a ordem de poder terrena. Mas o cume da montanha fica sempre muito distante das contradições que a estepe da história (ainda?) não conseguiu desconstruir. O microcosmo da amizade fraturada de Gonzalo, Silvana e Machuca aponta para uma cicatriz quiçá tão trágica quanto o golpe de Pinochet: a cicatriz da distinção social, a ferida secular que naturaliza as posições, os anseios e as distâncias. Bazucas, tanques e cercas eletrificadas, nesse sentido, são “apenas” as expressões limítrofes do “ponha-se no seu lugar”. Se o sermão um dia se dispuser a descer da montanha para caminhar entre Judas Iscariotes e Maria Madalena, o caráter ecumênico do perdão e da partilha do poder terá que lidar com o atavismo que forjou a noção de humanidade sobre o dorso prostrado do outro, isto é, dos mais fracos. Se chegássemos a tal situação, não veríamos apenas Gonzalo a pleitear a amizade de Machuca. Machuca e aqueles que sempre foram os últimos teriam que decidir pelo perdão (o esquecimento) ou pela vingança (o ressentimento).
– Vamos fazer as pazes, Machuca? – pergunta um Gonzalo temerário.
A resposta de Machuca, a meu ver, contém em germe o sentido emancipatório – ou regressivo – para que o trono de César possa ser desconstruído. (Ou para que os novos ocupantes, com o devido ressentimento que a história lhes legou, possam reproduzir com ainda mais requinte a lógica da distinção.)
*Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Todas as segundas-feiras, às 19h, apresenta, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – para assistir ao programa, basta acessar a página da TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
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