O coletivo, sempre

O coletivo, sempre
Fundado na ditadura, o colégio recebeu alunos e professores perseguidos pelo regime militar

A história e proposta de educar do Colégio Equipe, escola em que estudaram parte dos jovens que esquentaram a discussão sobre mobilidade urbana no País

Por Guilherme Genestreti e Livia Perozim — publicado na edição 79, de setembro de 2013

Faltavam poucos minutos para as 22 horas da segunda-feira, quando o casal de professores esperava apreensivo para assistir  a dois ex-alunos serem entrevistados na tevê. Eles estariam no centro do programa Roda Viva, na TV Cultura, passada uma semana de manifestações e truculenta repressão policial na capital paulista. “A Nina e o Lucas iam participar. Fiquei preocupado, porque a violência na rua estava aumentando consideravelmente. Minha mulher então disse: ‘Mas nós os educamos para isso!’”, conta o professor Antônio Carlos de Carvalho.



Em junho deste ano, quando revoltas populares incendiaram as principais cidades do País, pelo menos quatro dos membros da organização que deslanchou os protestos compartilhavam mais do que apenas a mesma opinião sobre transporte público. Tinham também estudado na mesma escola. A estudante de Direito Nina Cappello, 23 anos, o professor de História Lucas Monteiro, de 29, o aluno de Filosofia Marcelo Hotimsky, de 19, e a pós-graduanda em Sociologia Mariana Toledo, de 27 anos, todos militantes do Movimento Passe Livre (MPL), agremiação nacional que luta pela tarifa zero em ônibus, trens e metrôs, tiveram parte ou a totalidade da educação básica formada no Colégio Equipe, em São Paulo.

“A coincidência chama a atenção, mas não surpreende”, respondem alunos, ex-alunos e professores do Equipe, conhecido por estimular o pensamento crítico em seus estudantes. “Nós educamos os nossos alunos para transformarem o que não está bom”, resume Carvalho, professor de Geografia há 23 anos e coordenador dos projetos sociais do colégio. “A gente não fica dando aula de como se tornar militante político, mas tentamos formar alunos que vivam a política da cidade e a pensem como espaço de transformação da sociedade.”

Avessos a contar sobre detalhes da vida pessoal como a experiência escolar, “para não personalizar o movimento”, os integrantes do MPL parecem ecoar o próprio espírito da escola onde estudaram. “Isso é bem ‘equipano’. Sempre (pensar) no coletivo”, diz a autora e crítica literária Noemi Jaffe, que se formou e deu aulas lá. Assim como muitos ex-alunos, ela matriculou seus filhos no colégio: “Eu queria que eles também tivessem essa formação coletivista, de consciência social”.  Segundo ela, não se pode rotular o Equipe como “estritamente de esquerda”. “Não é isso. É um trabalho de conscientização social do papel do aluno na transformação da realidade”, explica.

Embora valorizem a participação do aluno no aprendizado, os educadores do colégio recusam o adjetivo de “construtivistas”, como se definem outras escolas que seguem linha pedagógica semelhante. “Em alguns momentos a gente partilha esses pressupostos, mas isso não é o tempo todo. O construtivismo responde como ensinar, mas não responde para quem ensinar e para que ensinar”, afirma Luciana Fevorini, diretora do Equipe. Filha de um dos fundadores do colégio, Luciana estudou na instituição no fim da década de 80, formou-se em Psicologia e seu primeiro emprego foi no próprio Equipe. “É muito comum ex-alunos tornarem-se professores aqui”, conta.
 
Digão, Luciana e Antônio Carlos: mentes que preparam alunos para o transformar

Ilha democrática
O Equipe foi fundado no auge da ditadura. Na época, alunos da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP davam aulas no cursinho pré-universitário do grêmio da instituição. Fragmentada politicamente, a entidade era um caldeirão ideológico, com membros ligados aos mais diversos partidos e vertentes da esquerda. No fim de 1967, insatisfeitos com as imposições da direção do grêmio, um grupo de dissidentes criou o próprio cursinho. Alguns anos depois, fundaram o colégio, que passou a operar em 1973 e absorveu grande parte de alunos e professores vindos de escolas experimentais desmanteladas pelo governo militar.

Na nova instituição, implantaram um ensino que enfocava a socialização do conhecimento, valorizava a postura crítica e a participação dos alunos no processo pedagógico, e que incluía uma grande carga de atividades complementares.

“Era uma situação meio anômala”, lembra um dos fundadores, Raymundo Campos, que aos 72 anos ainda dá aula de História e Cinema no colégio. “O Brasil vivendo uma baita ditadura e a escola com uma democracia: tudo era discutido, até o diretor era eleito.” Foram atraídos para o colégio filhos de exilados políticos, como os do deputado cassado Almino Affonso e do então professor universitário Fernando Henrique Cardoso. Ex-guerrilheiro, o atual deputado federal José Genoino dava aulas no cursinho.

Na época, muitos estudavam com bolsas integrais. Nas contas de Jocimar Archangelo, um dos fundadores, mais de 10 mil pessoas chegaram a ser entrevistadas para a concessão de bolsas. Hoje, segundo a escola, a política tornou-se financeiramente inviável e o benefício não cobre mais do que 30% de algumas mensalidades.

“O Equipe era uma ilha democrática. E nós tínhamos um pensamento político definido, de esquerda, libertário”, afirma Gilson Rampazzo, 69 anos, um dos sócios e professor de Redação até 2008. Ele conta que muitos alunos e professores foram presos nos anos de chumbo. “O diretor chegou a ser convocado para justificar por que é que os alunos liam História da Riqueza do Homem, do (socialista americano) Leo Huberman. Uma portaria do MEC desestimulava o trabalho em grupo nas escolas.”

O Equipe ainda é gerido por uma sociedade que inclui parte dos fundadores: o lucro não é distribuído, mas revertido em benefício da escola, política que prevalece desde sua origem. O curso preparatório acabou em 1983, mas o colégio permaneceu. Por não ter sede própria, já passou por diversos endereços e, desde 2010, está no bairro de Higienópolis.

“Não entendíamos o cursinho como um momento de educação, mas como momento específico da escolaridade que não traduzia nossas preocupações de formação”, explica a diretora pedagógica Ausonia Donato, 68 anos. Há mais de três décadas no Equipe, ela é uma espécie de matriarca do colégio e sua clareza e entendimento de educar explica muito do espírito da escola: “Criatividade, inventividade e participação viraram clichê. O que define o espírito do Equipe é coletividade sempre. Tem um autor, o Anton Macarenko,  que foi o primeiro a dizer ‘não existe trabalho coletivo com o aluno se não tiver trabalho coletivo entre os professores´. A gente aprendeu isso com ele”.

Discutir em roda

Os atuais equipanos podem fazer trabalho voluntário às segundas e terças-feiras, com projetos como leituras e atividades lúdicas para pacientes infantis. Também participam de viagens de estudo do meio que incluem visitas a usinas na poluída Cubatão e a plantios em Ribeirão Preto, no interior paulista, onde entrevistam cortadores de cana. No último ano do Ensino Médio, podem escolher como aulas extracurriculares cursos como “História e Cinema” e “Religião e Ideologia”, além de serem obrigados a produzir uma monografia.

É no último ano que também fazem os primeiros simulados para o vestibular, ao contrário de outras escolas que tendem a aplicá-los também nas séries anteriores. Embora não se apresente como um colégio focado em treinar alunos para provas, a preocupação com vestibular e o Enem é a mesma de outras escolas. “Um bom aluno do Equipe não tem dificuldade para entrar em boas faculdades”, diz Luciana Fevorini. “Mas os bons resultados devem vir como consequência de um bom processo educativo, e não como meta principal do ensino.”

Uma das tradições que se mantêm é o grêmio estudantil. A aluna do 3º ano do Ensino Médio Bia Carvalho, 17 anos, é uma das integrantes. A estrutura da entidade, sem líder, lembra a dinâmica horizontal do MPL. “O grêmio é aberto e funciona à base da autogestão. As decisões são tomadas por consenso”, diz Bia, que esteve presente nas manifestações de junho. “No fim do semestre, todos os professores entravam e sala e comentavam os protestos”, conta a estudante.

 O professor de Biologia Rodrigo Travitszki, 36 anos, foi um deles. “Falei que era importante participar, mas que era para tomar cuidado com a violência”, afirma o também ex-aluno. Em 2008, o professor pediu em um trabalho que os alunos apontassem propostas concretas que se assemelhassem a suas utopias. Um grupo escolheu o MPL. “Achei genial porque é um movimento que faz uma crítica, é a favor de uma utopia, mas ao mesmo tempo tem um objetivo de curto prazo.”

Nina Cappello e Lucas Monteiro foram seus alunos. “Ela não parava quieta, era cheia de energia. Ele era mais tranquilo, mas os dois gostavam de discussão”, lembra Travitszki. O professor Antônio Carlos também se lembra de Lucas. “Ele fazia mediação de leitura para crianças desnutridas. Quando a passagem aumentava 10 centavos, metade delas não ia porque os pais não tinham como levar. Essa dimensão (do que representa o aumento de 10 centavos) a maioria da sociedade não tem.” Em 2011, já como militante do MPL, Monteiro foi chamado pelo grêmio para um debate na escola.

“Desde o meu primeiro ano, eu já tomei contato com essas discussões sobre mobilidade urbana, então não surpreende que exista tanta gente que saia daqui e continue se envolvendo”, afirma Luka Barone, 19 anos, membro do grêmio. Para ele, quem se forma no Equipe sai com consciência política maior. “O que fica é realmente o questionar, é o legado que o colégio acaba deixando.”

Opinião semelhante tem o escritor Antonio Prata, 35 anos, que se formou ali em 1995. Para ele, perceber que havia ex-alunos do Equipe entre os membros do MPL foi “um insight”: “Moleques que pararam a cidade para discutir em roda o País? Claro, aquilo parecia uma aula do Equipe!”

Efervescência cultural


Na contramão da censura da época, os shows de música dos anos 70, agitados por Serginho Groisman, davam espaço para todas as tribos


Serginho Groisman, 63 anos, guarda uma foto especial em sua sala na Rede Globo: quase irreconhecível, o apresentador aparece sorrindo, barbudo e cabeludo, diante de uma plateia espremida. O registro, de um show feito por Gilberto Gil no Colégio Equipe, é da década de 70, época em que Groisman esteve à frente do centro cultural da escola.

Caetano Veloso, Jards Macalé, Cartola, Nelson Cavaquinho, Raul Seixas, Gonzagão e Gonzaguinha foram alguns dos que pegaram carona no Fusca branco do então estudante universitário para tocar no colégio. “Eles não tinham onde se apresentar porque não havia um circuito cultural e por causa da censura. De repente, o Equipe passou a ser um centro possível”, conta Serginho.

João Bosco e Elba Ramalho estrearam em São Paulo no palco daquele colégio. Foi lá também que Gil tocou pela primeira vez Não Chore Mais, sentado sobre mesas escolares.

“Tinha de tudo no colégio: 
o pessoal da Libelu (grupo estudantil de inspiração trotskista), o pessoal do LSD, o pessoal que só gostava de cinema, de música. Essa mistura de gente me fez perceber um pouco do que eu viria a ser na tevê”, afirma.
Groisman tinha carta-branca da escola para chamar gente como o líder comunista Luiz Carlos Prestes para dar palestras, mas vivia sob a vigilância cerrada da ditadura. “O diretor falava que era melhor eu andar com uma trouxinha de roupa para o caso de ser preso.”

Na bilheteria dos shows, Serginho contava com a ajuda dos alunos Branco Mello e Marcelo Fromer, que mais tarde se juntariam aos outros ex-colegas Arnaldo Antunes, Paulo Miklos, Sérgio Britto e Nando Reis na criação da banda Titãs.

 “A escola foi o ponto de união. Foi determinante na minha formação pelos amigos que eu fiz”, diz Nando Reis, que estudou no Equipe entre 1978 e 1980, quando também passaram por lá os cineastas Cao Hamburger e Tata Amaral e os artistas plásticos Leda Catunda, Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez, Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade – os cinco últimos formariam o ateliê Casa 7, que despontou nos anos 80.

“O Equipe era uma ilha de ‘ripongas’”, diz Leda, que se lembra de ter feito uma exposição de colagens no pátio da instituição. “Passei o colegial inteiro num ensaio. Tinha curso de Fotografia, Cinema, Teatro, coisa que escola nenhuma tinha.”

“Era todo mundo muito cabeludo naquele clima de liberdade. Tive uma identificação muito forte com as pessoas que eu encontrei lá”, afirma Cao Hamburger, que antes de cogitar o cinema, quis ser músico e teve uma banda com os colegas Nando Reis e Paulo Monteiro.

Rolex no pulso e usando calça Fiorucci, o jornalista e ex-colunista da revista Veja Diogo Mainardi destoava do visual “bicho-grilo” de seus colegas. Quem conta é o jornalista Mario Sabino, também ex-aluno, com quem Mainardi integrou um grupo escrachado chamado “Porcos Chauvinistas”.

“O grupo era direitista e sofria bullying por isso”, brinca Serginho Groisman, que pretende dirigir um documentário sobre os dez anos que passou coordenando o centro cultural.

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