Fundamentalismo midiático: religião ocupa concessões públicas
A maioria da população brasileira não sabe, mas o espaço ocupado pela transmissão dos sinais de rádio e televisão é público, o que dá às emissoras o dever de respeitarem, em sua programação, os princípios constitucionais. E o Brasil é um Estado laico. Não é demais, portanto, esperar que a programação do rádio e da TV não privilegie nenhuma religião e tampouco seja espaço para o proselitismo religioso.
Por Bia Barbosa e Helena Martins, no Geledés*
Porém, se você já cansou de "zapear" em busca de conteúdo não-religioso na TV, prepare-se para usar ainda mais o controle remoto. Desde o ano passado, a Rede Globo tem estabelecido uma forte parceria com o setor evangélico, o que foi expresso na cobertura do musical "Festival Promessas", na contratação de artistas gospel para a gravadora do grupo, a Som Livre, e na inclusão de personagens evangélicas na teledramaturgia - Ivone (Kika Kalache), de "Cheias de Charme", e Dolores (Paula Burlamaqui), de "Avenida Brasil". Líderes evangélicos reunidos em 2012 com a maior emissora do Brasil pediram mais: uma heroína evangélica no horário nobre.
A parceria com a emissora é mais uma mostra da penetração das igrejas na mídia, um fenômeno que não é recente, mas que ganha proporções cada vez mais significativas. Levantamento realizado por Figueredo Filho, apoiando-se em dados de 2006, revela que 25,18% das emissoras de rádio FM e 20,55% das AM nas capitais brasileiras são evangélicas - muitas neopentecostais que, hoje, concorrem com a Igreja Católica, antes liderança no número de altares eletrônicos.
Dados divulgados pela Folha de São Paulo revelam que o "televangelismo", hoje, ocupa 140 horas semanais da TV brasileira. A Rede TV, líder na programação religiosa, vende 46h de sua programação semanal para igrejas; já a Record, da Igreja Universal, disponibiliza 32h. O terceiro posto deste ranking é ocupado pela Band, com 31h. Levantamento realizado pelo Intervozes denuncia casos como o do Canal 21, também do grupo Bandeirantes, que arrenda 22 horas diárias de sua programação à Igreja Mundial do Poder de Deus.
Já o poder público tem se eximido de enfrentar os interesses das igrejas e garantir que o sistema de comunicação não sirva ao proselitismo religioso. A ausência de ações dá-se mesmo quando esses grupos usam seus representantes no Congresso Nacional para manter e até mesmo ampliar suas redes de comunicação. Nesses casos, a tríade comunicação, religião e política mostra todo o seu poder de sustentação ideológica, política e econômica. E parlamento e mídia viram espaços para a publicização de discursos baseados no tradicionalismo, na defesa da família e da moral cristã.
Na esteira do fortalecimento do conservadorismo da sociedade, pautas históricas como o aborto, o casamento civil de pessoas do mesmo sexo e, ainda, a democratização dos meios de comunicação continuam interditadas no debate público. Essa situação faz com que seja urgente inscrever, na agenda dos movimentos sociais, a luta contra o conservadorismo e em defesa da pluralidade e da diversidade na mídia - inclusive de credos.
É este um dos objetivos do Projeto de Lei de Iniciativa Popular por uma mídia democrática, que pretende coletar mais de um milhão de assinaturas por um novo marco regulatório do setor no país. Do contrário, veremos os espaços públicos serem ocupados por setores que desconhecem os avanços políticos conquistados por grupos que foram, historicamente, oprimidos, mas que há tempos lutam por uma sociedade igualitária e livre de todo preconceito.
* as autoras integram o Setorial de Mulheres do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação. Helena Martins é mestra em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará e editora na TV Brasil. Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos, mestranda em políticas públicas pela FGV-SP e integrante da Rede Mulher e Mídia.
(Título original "Fundamentalismo midiático: a religião ocupando as concessões públicas" alterado por redaçãoVermelho)
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