O dia em que Marina Silva levou a mortadela ao bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro

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Enquanto Marina faz a “pequena nova política”, a educadora Neca Setubal aguarda sua vez de fazer a “nova Política”. Com P maiúsculo
por Luiz Carlos Azenha

Marina Silva acabou na Tijuca, o bairro de classe média branca do Rio de Janeiro. A locutora da campanha, que usava um megafone para animar o público, colaborou com o quadro. Repetia o velho bordão, “é a campanha do tostão contra o milhão”. Conclamava quem assistia à passagem da candidata a “varrer a corrupção” do Brasil. Dois slogans surrados, ambos de Jânio Quadros, o ex-presidente que renunciou para voltar “nos braços do povo” e acabou afogando as mágoas num destilado.

Histriônico, demagogo, exibicionista. Em seu tempo, Jânio também navegou nas ondas da antipolítica. Governou usando bilhetinhos dirigidos a subordinados ineptos. Num mundo de iletrados, a gramática — da qual Jânio era professor — foi colocada a serviço do povo. O teatro janista incluía a exibição da caspa que cobria os ombros dos paletós e a preferência pelos sanduíches de mortadela. Ainda estávamos na era do rádio, mas em seus comícios Jânio já fazia televisão.
mise-en-scène servia muito bem para encobrir os interesses econômicos que se aglutinavam em torno de Jânio. Ele emprestou seu talento, direta ou indiretamente, ao Partido Democrata Cristão, à União Democrática Nacional e ao Partido Trabalhista Brasileiro. A fama de imprevisibilidade permitia ao candidato descartar as legendas de acordo com seus próprios interesses.
O encerramento da campanha de Marina, na Tijuca, também foi um espetáculo. Adiante da candidata, seguia um caminhão abarrotado de cinegrafistas e fotógrafos. Atrás, num jipe safari, a candidata e o seu círculo de assessores mais íntimos. Num discreto automóvel preto, de vidros filmados, viajava a educadora Neca Setubal, acionista do Banco Itaú. As duas — a candidata e a filha do banqueiro — chegaram e foram embora juntas.
Como outros candidatos, nesta campanha de 2014 Marina é refém da agenda da mídia. O consórcio Globo-Abril-Folha-Estadão, que controla 3 de cada 4 reais investidos em publicidade no Brasil, faz tempo enquadrou a política-eleitoral.
Promotores e beneficiários da ditadura militar, os irmãos Marinho, os Civita, os Frias e os Mesquita ficaram aflitos quando o movimento popular encurralou os militares e deu forma à Constituição cidadã de 1988. Desde então, as quatro famílias insistem em circunscrever o debate político às suas páginas e estúdios. É como se tivessem pedagiado a democracia. As catracas só se abrem para as ideias aceitáveis à elite que representam. Não é por acaso que capítulos inteiros daquela Constituição ainda não tenham sido regulamentados.
Soa zombaria a ideia que fazem de democracia.
Em anúncios comuns durante o período eleitoral, a Globo compara sua liderança na audiência — obtida com benesses da ditadura, práticas monopolistas e o pagamento de jabás ao mercado publicitário — com a votação estrondosa de um candidato verdadeiramente popular.
Mesmo a Folha, cuja pretensão intelectual destoa do prédio coberto de pastilhas na vizinhança da cracolândia, vê e promove seus leitores como indivíduos “consumidores de informação”. Podem se dar ao luxo de consumir de um cardápio variado de opiniões, diz a mais recente campanha publicitária do jornal. Podem até discordar da Folha. Ainda assim, são sujeitos com autonomia pela metade, já que a definição do cardápio continua se dando na mesa do Otavinho.
Por outro lado, os movimentos coletivos, organizados, que ameaçam a tutela dos donos da mídia sobre a democracia, são tratados como entraves ao livre trânsito dos automóveis que transportam os “consumidores de informação”.
Esta tarde, na Tijuca, Marina cumpriu a agenda do GAFE. Compromissos foram feitos e desfeitos ao sabor de um objetivo: gerar imagens e “notícias” para preencher 90 segundos do Jornal Nacional, disputando o interesse do telespectador com a moça do tempo e os gols da rodada. Marina desfilou em carro aberto. Fez uma breve fala para estimular duas dúzias de eleitores a produzirem o que na TV chamamos de “sobe som”. Toda reportagem tem um. Hoje, foi um coro de aprovação.
Brevemente, Marina compartilhou com os tijucanos o simulacro da “atividade política”.
Não houve debate, nem tempo para as lideranças comunitárias. Marina falou, o público ouviu. Os mais ousados tiraram selfies para usar no Facebook. Não deixam de ser retratos que resumem os rumos da política partidária no Brasil.
Ironia falar em “nova política” quando ficou evidente, para quem quis ver, a completa desconexão entre a candidata e o bairro que decidiu visitar.
Na breve entrevista aos jornalistas, Marina repetiu o discurso. Segundo ela, existem o PT, o PSDB e a “sociedade”, que ela pretende defender dos dois primeiros, separando bons de maus.
Tarefa de uma abelha-rainha, que paira sobre todos.
Se é a “sociedade” vista hoje na Tijuca, ela é amorfa, ahistórica, muda e cativa dos velhos bordões do Jânio.
Por trás do teatro, quem parecia fazer política com P maiúsculo estava em um automóvel preto, de vidros filmados, ouvindo e se fazendo ouvir pela candidata.
O mundo gira, a Lusitana roda, e a mortadela do Jânio veio parar na Tijuca.

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