O filme “Sniper Americano”, fenômeno nos EUA, é uma peça de propaganda para glorificar um psicopata
A chave de “Sniper Americano”, o novo filme de Clint Eastwood que virou fenômeno nos EUA (90,2 milhões de dólares na estreia em janeiro, a maior de todos os tempos nesta época do ano) é um monólogo do pai do personagem central Chris Kyle.
Existem, diz ele para os filhos pequenos na mesa do jantar, três tipos de pessoas: lobos, ovelhas e pastores. Os lobos são o mal. As ovelhas são gente boa, mas incapazes de perceber o perigo que as espreita. Por isso precisam, finalmente, dos pastores para protegê-las.
Essa simplificação moral serve de base para o que é provavelmente o longa baseado em fatos reais mais mentiroso da história. Clint perpetrou mais falsificações do que o já esburacado “Zero Dark Thirty”, de Kathryn Bigelow, com sua defesa enviesada da tortura.
“Sniper Americano” é uma adaptação da autobiografia de Kyle. Ele era um rapaz de boa família texana, criado com princípios sólidos, que tenta a vida como caubói. Um belo dia, vê pela TV o ataque à embaixada de seu país em Nairóbi em 1998 e decide se alistar nos Seals, a tropa de elite dos marines. “Isso não vai ficar assim”, sussurra entredentes.
Com a destruição das Torres Gêmeas em 2001, Kyle finalmente realiza seu sonho de salvar o mundo e vai para o Iraque. Aboletado no alto dos edifícios, abate sem dó os inimigos com tiros precisos. Cumpriu o destino de ser o “pastor” de que seu pai falava.
Ele tem um adversário: Mustafa “O Açougueiro” (“The Butcher”), sniper da Al Qaeda. O desgraçado alveja o melhor amigo de Kyle. Por mais que ame sua família — mulher e um casal de filhos fofos –, Kyle não pode voltar para sua terra antes de acertar as contas.
Clint não é conhecido pelos meios tons. Em seu trabalho, vilões são vilões, mocinhos são mocinhos. Não há zona cinzenta. A nêmesis de Kyle se veste de preto da cabeça aos pés, com uma bandana de pirata na cabeça. “O Açougueiro” é uma espécie de Darth Vader de Alá.
Em contraposição, nosso heroi é branco, bonito, forte — e, essencialmente, um asno. Em nenhum momento o protagonista se permite pensar minimamente sobre a natureza do conflito. Ele é uma máquina de apertar o gatilho em nome de um bem maior. Ponto. Os nomes de George W. Bush e Saddam Hussein não são sequer mencionados em mais de duas horas de ação.
Os iraquianos são chamados apenas de “selvagens”, “motherfuckers” e “fuckers”. Mesmo as crianças iraquianas gostam mesmo é de atirar granadas por aí. Kyle fuzila um menino de 10 anos e sua mãe — mas, com isso, salva cem soldados com seus tanques. Zero a zero.
Os árabes são a versão hollywoodiana moderna dos índios dos faroestes. São desumanizados, feios, sujos e malvados. Apaches e comanches conseguiram ter seu papel revisto depois de “O Pequeno Grande Homem”, de 1972. Vai levar um tempo para uma outra sub-raça vai substituir os árabes.
“Sniper Americano” tenta vender o Iraque como um Vietnã. Os corajosos fuzileiros navais estão cercados por milhares de terroristas fortemente armados, ardilosos, inclementes com seu próprio povo. De 2003 a 2014, calcula-se que morreram aproximadamente 4 mil americanos, contra pelo menos 100 mil iraquianos. Algumas organizações de direitos humanos falam em 600 mil.
Chris Kyle é considerado o maior sniper dos EUA. Ganhou o apelido de “Lenda” ainda em atividade. Oficialmente, despachou pelo menos 160 almas. Kyle é um assassino hábil movido pelo patriotismo, o último refúgio do canalha. “Eu amava o que fazia e ainda amo… Não estou mentindo ou exagerando quando digo que era divertido”, admitiu em seu livro.
O documentarista Michael Moore definiu Kyle como “covarde”. O comediante Seth Rogen escreveu no Twitter que “Sniper Americano” lhe lembrava aquela peça de propaganda nazista no terceiro ato de “Bastardos Inglórios”, chamada “Stolz der Nation” (“Orgulho da Nação”).
Ambos tiveram que se explicar em seguida diante da avalanche de críticas que receberam.
“Sniper Americano” é um filme de propaganda que ainda vai faturar milhões com audiências felizes em ver o que queriam ver sobre elas mesmas. Tem seis indicações ao Oscar, entre elas melhor filme e melhor ator para Bradley Cooper. É uma aula de mistificação barata e de como transformar um psicopata num heroi. O velho Clint acertou uma bala na testa das ovelhas que acreditam nele.
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