Morte de promotor argentino ganha ares de romance policial


Entrada do prédio onde trabalhava Nisman, em Buenos Aires (Reuters)
A investigação da morte do promotor Alberto Nisman, de 51 anos, na Argentina está ganhando traços similares ao de um romance policial: com pistas a conta-gotas. Uma trama com espiões, guarda-costas, autoridades políticas, portas destrancadas e um misterioso encontro no aeroporto.

Ao imbróglio acrescenta-se ainda pegadas num corredor, digitais, a arma calibre .22 que ele pediu emprestada na véspera a um auxiliar, a lista de compras que deixou para a empregada e muitas dúvidas sobre as horas de silêncio entre sua morte e o momento em que seus guarda-costas decidiram pedir ajuda por não conseguir se comunicar com o promotor.
Nisman foi encontrado com um disparo na cabeça em seu apartamento na noite de domingo, poucas horas antes de um depoimento que daria no Congresso para apresentar evidências de supostas graves acusações contra a presidente Cristina Kirchner.
Quatro dias antes de morrer, ele acusara a presidente, o ministro das Relações Exteriores, Héctor Timerman, e outros assessores do poder central de um "pacto criminoso" com o governo iraniano do então presidente Mahmoud Ahmadinejad para acobertar responsabilidades no pior atentado na história do país e da América Latina.
O falecimento de Nisman foi registrado pela Justiça como "morte duvidosa", segundo a promotora que investiga o caso, Viviana Fein.
Na segunda-feira de manhã, com o país em choque com a notícia, a promotora sugeriu não ter dúvidas de que ele tinha se matado: "Não houve terceiros envolvidos", disse.

Medo de morrer

A essa trama soma-se ainda o temor de Nisman de estar sendo perseguido e acabar morto. Fato que o teria levado a deixar três cópias da sua investigação com pessoas diferentes, uma delas, um jornalista que teve a casa "quase" vasculhada na quarta-feira por ordem judicial - ele diz que a polícia acabou batendo na casa vizinha.
Estes são apenas alguns dos detalhes de uma história que, como nos livros de Agatha Christie, não para de surpreender os argentinos.
E nesta sexta-feira, o drama ganhou mais um personagem: uma misteriosa pessoa de identidade desconhecida, que recebe Nisman no aeroporto de Buenos Aires no dia 12 de janeiro, assim que ele retornou ao país depois de interromper subitamente suas férias na Europa.
O encontro foi filmado por câmeras de segurança e as imagens foram divulgadas por canais de TV argentinos nesta sexta.
Pelo país, cada um faz seu papel de detetive. "Acho que mataram o homem porque ele sabia demais", palpitou um taxista na quarta-feira em uma corrida entre os bairros de Palermo e da Recoleta.
"Para mim, ele não sabia nada e se matou de vergonha porque não tinha nada contra o governo", disse uma empregada doméstica.
Enquanto nas ruas as especulações crescem, os dados da investigação alimentam a confusão.
AFP
'Eu sou Nisman' foi uma das frases vistas nos protestos em Buenos Aires, parafraseando o 'Je Suis Charlie'
"Abri a porta em dois minutos. Só usei um arame para empurrar a chave que estava na porta (dos fundos) e impedia que a outra entrasse e girasse. Qualquer pessoa poderia abrí-la", disse o chaveiro Walter, no centro dos diversos microfones de rádios e de TVs argentinos e estrangeiros.
Teria ficado claro assim que somente a porta principal do apartamento no décimo terceiro andar do edifício Le Parc, de classe média alta e alta, tinha código secreto. As demais, a fechadura clássica. "E quem lhe pagou para abrir a porta?", perguntaram os repórteres.
"A mãe dele me pagou e eu não cheguei a entrar no apartamento", respondeu.
A mãe do promotor, Sara Garfunkel, foi pega em casa, na tarde de domingo, por dois dos dez guarda-costas que nos últimos tempos faziam a segurança de Nisman.

Quebra-cabeças

Sara disse que não acredita na tese de suicídio. A ex-mulher do promotor, a juíza Sandra Arroyo Salgado, também não, como disse ao entrar no tribunal.
Numa mensagem publicada na quinta-feira em sua página no Facebook, Cristina disse acreditar na tese de assassinato.
Em mensagem anterior na rede social, Cristina havia dito: "O que foi que levou uma pessoa a tomar a terrível decisão de tirar a vida". Na mensagem seguinte, afirmou: "Tenho certeza de que não foi suicídio".
A afirmação da presidente criaram uma grande polêmica no país. Na noite de quinta-feira, governadores e ministros aliados leram uma carta de apoio à presidente e disseram que, como ela, também querem saber o que aconteceu com Nisman. Para o governo, as denúncias do promotor são "infundadas".
"Ele tinha me falado que faria a denúncia (contra a presidente) depois que ela deixasse o cargo em dezembro. Não sei o que aconteceu para ele antecipar a acusação", disse a advogada Marta Nercelles, que o conhecia.
AP
A promotoria armazena documentos para determinar as circunstâncias da morte de Nisman
As TVs argentinas mostraram um quebra-cabeças para explicar, didaticamente, as peças duvidosas e as que faltam para que a morte do promotor seja esclarecida.
"Por que o secretário de Segurança (ligado à Presidência) esteve no local? Por que não deixaram entrar a ambulância do SAME (serviço público)?", perguntam, em uma série de indagações.
"Quando chegamos, a mãe já parecia saber que ele estava morto", disse um médico do plano de saúde do promotor.
"Não chegamos a entrar no banheiro. Mas vimos o sangue e a arma", afirmou.
A primeira autópsia, divulgada segunda-feira, tinha atestado suicídio. Porém, nas mãos de Nisman não havia sinais de pólvora. "Mas nem todas as armas deixam rastros de pólvora", disseram especialistas na TV, confundindo ainda mais o já confuso caso.

Repercussão

O coquetel de pistas, sangue, poder e dúvidas passou a ser o principal assunto no país e repercutiu na imprensa internacional. Temas que antes eram destaque na mídia local, como a inflação galopante, agora merecem pé de página.
"Um corredor e digitais, novas pistas que agregam mistério ao caso Nisman", publicou o jornal La Nación em sua manchete da quinta.
Clarín, nesta sexta, afirmou que o governo defende agora que a denúncia de Nisman contra Cristina teria sido escrita por uma terceira pessoa, por conter supostos erros jurídicos que não teriam sido cometidos pelo promotor.
"O último que viu Nisman com vida", estampou o Página 12 na sua primeira página. A foto era de Diego Lagomarsino, ex-auxiliar do promotor que lhe emprestou a arma da sua morte.
"O promotor me contou que queria a arma para se proteger e que, na véspera, o agente de inteligência 'Jaime' Stiuso tinha telefonado para ele para dizer que desconfiasse dos guarda-costas e que tivesse cuidado com a segurança das suas (duas) filhas", disse o técnico de informática Lagomarsino.
Chamado pelos amigos de "cerebrito" (geniozinho) pelo domínio dos assuntos de informática, ele afirmou que entrava e saia da casa do promotor sem ter que pedir autorização na portaria porque já era conhecido da casa.
'Jaime' é o nome de fachada do agente de inteligência Antonio Horacio Stiuso, demitido no fim do ano passado pela presidente Cristina Kirchner com outros especialistas do ramo, como publicou o jornal Perfil.

Novela

A investigação sobre a intrigante morte do promotor que estava de dieta e malhava constantemente com um personal trainer, "num sinal de que queria viver", segundo a imprensa local, é acompanhada por 98% da população nacional, segundo pesquisa de opinião da consultoria M&F divulgada na quinta-feira.
A mesma pesquisa indicou que a maioria (mais de 60%) acha que seu final ficará "impune" (no caso de ele ter sido assassinado).
Se a opinião pública estiver certa, será mais um caso policial e político que ficou sem respostas convincentes na história do país.
Entre os outros, estão o roubo das mãos, em 1987, do ex-presidente Juan Domingo Perón, de seu túmulo; a morte do empresário Alfredo Yabrán, em 1998, que mantinha misteriosos vínculos com o governo Menem e cujo rosto era desconhecido do grande público, mas foi revelado por um famoso fotojornalista, José Luis Cabezas, em 1996; e a intrigante história sobre o corpo "sequestrado" de Evita Perón, morta em 1952.
Até mesmo a morte do ex-presidente Nestor Kirchner, em 2010, ainda gera especulações. "Ninguém nunca viu o corpo dele. Será que ele fugiu porque era acusado de corrupção?", perguntam os mais céticos.

Na Argentina, os casos de morte de políticos, com marcas de conspiração, costumam virar livros e filmes. O caso de Nisman promete não ser diferente

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