Governo e Procuradoria Geral não estão agindo com o rigor que deveriam nos vazamentos da Lava Jato
por Conceição Lemes
A Operação Lava Jato já dura oito meses.
Desencadeada pela Polícia Federal (PF) em 17 de março, objetivava inicialmente averiguar a denúncia sobre a ação de doleiros em um empreendimento industrial na cidade de Londrina (PR). Quatro meses depois, a PF verificou que se tratava de algo muito maior e envolvia parlamentares, funcionários públicos, executivos de empreiteiras e doleiros.
Na ocasião, foram cumpridos 81 mandatos de busca e apreensão, 18 mandatos de prisão preventiva e 10 mandatos de prisão temporária. Entre os presos o doleiro Alberto Youssef e o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa.
Na semana passada, 14 de novembro, em mais uma fase da Lava Jato, foram presos Renato de Souza Duque, ex-diretor de Serviços da Petrobras, e executivos de nove empreiteiras: Camargo Corrêa, OAS, UTC/Constram, Odebrecht, Mendes Júnior, Engevix, Queiroz Galvão, Iesa Óleo & Gás e Galvão Engenharia.
“Até o momento, por tudo que li, a Lava Jato não tem nada de golpismo”, avalia Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC, em São Paulo. “É maior operação de combate à corrupção na história do Brasil. Pela primeira vez se pegou gente de alto coturno. Tanto de empresas privadas quanto da administração pública.”
Mas a investigação, segundo Serrano, tem alguns problemas.
“A minha grande preocupação é com os vazamentos seletivos de informações”, observa. “Eles podem comprometer o futuro da investigação, favorecendo os próprios investigados.”
“O mais grave é que o governo – leia-se Ministério da Justiça — e a Procuradoria-Geral da República não estão agindo com rigor que deveriam ter neste caso”, denuncia Pedro Serrano. “O governo já deveria ter substituído imediatamente os delegados suspeitos e o procurador-geral da República avocado para si os inquéritos.”
“Não precisa nem ter cometido o delito do vazamento. Basta a suspeita para justificar o afastamento como forma de preservação da investigação”, frisa Serrano. “A equipe inteira deveria ser afastada.”
Segue a íntegra da nossa entrevista:
Viomundo – Há quem diga que a Lava Jato é golpismo, concorda?
Pedro Serrano – Por tudo o que tenho lido, não tem nada de golpismo. Erram aqueles insistirem nessa tese.
Viomundo – Por quê?
Pedro Serrano – A Lava Jato é uma investigação séria. Não é como o caso do mensalão, que foi construído de forma fake para atender as demandas de mídia. A meu ver, o enredo do mensalão não foi contado com base nos autos.
Pelo menos, por enquanto, a Lava Jato me parece uma operação consistente, com fatos comprovados, que indicam a prática de crimes graves, inclusive corrupção e lavagem de dinheiro.
É a maior operação de combate à corrupção na história do Brasil. Maior no sentido de impactante em relação aos núcleos superiores das práticas de corrupção no Estado brasileiro.
A Lava Jato é o coroamento de todo o processo de investimento feito pelos governos Lula e Dilma na estrutura de investigação da Polícia Federal.
Nesses últimos 12 anos, a PF alcançou um nível muito alto de capacitação e independência: está bem aparelhada, bem servida de técnicos, com profissionais muito qualificados. Tal combinação lhe permitiu detectar, através de processos legítimos de investigação, o núcleo de corrupção que envolvia diretores da Petrobras e empreiteiras.
Evidentemente que isso precisa ser demonstrado no processo, ter provas. Mas, de qualquer forma, acho que é a investigação mais relevante do gênero na história do Brasil. Pela primeira vez se pegou gente de alto coturno. Tanto de empresas privadas quanto da administração pública.
Viomundo — Impactante por quê?
Pedro Serrano – Por pegar o corruptor. Mas impactante também porque, pela primeira vez, se investiga com critério, ciência e racionalidade uma prática da política brasileira, assim como do mundo inteiro, que é a relação promíscua entre campanha política, agentes públicos e empresas privadas.
Viomundo – De longa data se sabe que as empreiteiras pagam propinas não apenas para campanhas eleitorais, é um modus operandi delas.
Pedro Serrano — Por isso mesmo é a investigação que foi mais foi a fundo nisso.
Viomundo – E os vazamentos seletivos de informações para a mídia?
Pedro Serrano – Quase todas as investigações que chamam atenção na mídia acabam sendo objeto de vazamentos seletivos através de servidores da Justiça ou da polícia. Constrói-se uma narrativa pública condenatória dos investigados.
Infelizmente, isso está ocorrendo na Lava Jato também.
Considero isso um grande problema da máquina judiciária brasileira. Aqui, não falo só do Judiciário, mas da máquina da Justiça, da máquina do Estado brasileiro que investiga.
Viomundo – Inclusive a Polícia Federal?
Pedro Serrano – Claro! Polícia Federal, Ministério Público, Justiça.
Viomundo – Nas eleições deste ano, os vazamentos foram usados com objetivos políticos.
Pedro Serrano — Concordo. Mas a minha preocupação não é com o uso político, que eu acho secundário. Nem com a imagem dos réus, problema relevante mas não o principal.
A minha grande preocupação é com o futuro da investigação. Quando se tem investigados de alto coturno, há grande possibilidade de eles se mobilizarem para interferir nas investigações.
Portanto, quem está vazando informações, está agindo em desfavor da investigação e a favor do espetáculo. Está privilegiando o espetáculo em detrimento da investigação.
O mais grave é que o governo – leia-se Ministério da Justiça — e a Procuradoria-Geral da República não estão agindo com o rigor que este caso exige. O governo deveria ter substituído imediatamente os delegados suspeitos e o procurador-geral da República avocado para si os inquéritos.
Veja bem. Para se condenar administrativa ou criminalmente alguém por vazamento de informação é preciso ter a prova do crime. Mas para afastar da investigação, não. Basta a suspeita de que essa pessoa está vazando para afastá-la e colocar outro agente público no seu lugar.
Para as investigações não interessam se é um agente ou outro, porque elas são impessoais. Podem ser conduzidas por qualquer agente público que tenha autoridade para isso.
Aliás,tem de se trocar a autoridade que investiga toda a vez que houver suspeita de que ela esteja vazando. Para o bem da própria investigação, para protegê-la.
Viomundo – E o governo não fez isso?
Pedro Serrano — Não. Ele abriu sindicância para apurar o vazamento, mas não afastou de imediato as autoridades que estão investigando.
Este tipo de comportamento, assim como a leniência da mídia e até da sociedade podem, sim, prejudicar e a acabar matando a investigação, favorecendo enormemente os investigados.
Eu não estou dizendo que a culpa é da mídia. O papel do jornalista é divulgar as informações que chegam a ele. A culpa é do agente público envolvido, que passa essa informação, e das autoridades que não o afastaram quando houve esse vazamento.
Viomundo – Quer dizer que os agentes públicos já deveriam ter sido afastados?
Pedro Serrano — Sim. Não precisa nem estar vazando. Basta a suspeita. A equipe inteira deveria ser afastada.
Na atividade jurisdicional, só a escolha do advogado é personalíssima. Se o réu escolhe aquele advogado, é aquele advogado. Agora quem acusa e quem investiga é impessoal. Basta ser um agente público com autoridade para tanto.
Viomundo — Então o governo tem o poder de afastar os policiais?
Pedro Serrano – Tem. O governo, aliás, já deveria ter afastado os policiais suspeitos e o procurador-geral, avocado para si o inquérito.
Insisto. As autoridades superiores não estão agindo com o rigor maior que este tipo de vazamento exige, o que pode prejudicar as investigações e beneficiar os investigados.
Viomundo – Quatro delegados da PF responsáveis pela Lava Jato foram flagrados no Facebook fazendo críticas à presidenta Dilma e a Lula e apoiando Aécio Neves.
Pedro Serrano – Manifestar as respectivas opiniões políticas é um direito deles. O fato de terem essa ou aquela preferência não quer dizer que estejam se conduzindo mal no caso.O problema é que está havendo inclusive vazamento de sigilo telefônico, que é informação ultra sigilosa.
Viomundo — Dá para saber se são esses quatro que estão vazando?
Pedro Serrano – Não é o que interessa. O importante é que o governo deveria afastar de pronto os delgados e o procurador-geral da República avocar os inquéritos.
Viomundo – Pode levar à anulação do inquérito?
Pedro Serrano — Não digo anulação, mas à ineficiência de uma investigação que é seriíssima. É um absurdo perder essa investigação por causa do comportamento inadequado em relação ao sigilo das informações. Não se pode permitir esse tipo de vazamento. A Polícia Federal e o MP têm mecanismos suficientes para impedi-lo.
Viomundo — Quando eles querem, não é….
Pedro Serrano — Concordo. Tanto que eles vazam seletivamente. O que sinaliza que têm uma operação pensada nisso.
O vazamento de informações de inquérito é um atraso. É uma atitude não republicana. É uma atitude complemente contrária a todo o espírito que deve envolver uma investigação como essa.
Quem vazou, cometeu crime grave. Agora, independentemente de quem o cometeu, tem que se estancar o problema. E o único jeito de estancar é substituir as pessoas que estão lá.
Viomundo – As contas de campanha da presidenta Dilma acabaram ficando indevidamente nas mãos do ministro Gilmar Mendes, que já demonstrou em várias ocasiões ser anti-PT. Tem gente achando que ele rejeitará as contas, alegando contaminação do caixa 1. O que acha disso?
Pedro Serrano – Não há nenhum fato relevante que possa levar à impugnação da candidatura da presidenta Dilma. Ela foi eleita pela soberania popular. Eu não creio que isso vá levar a nada no sentido concreto. Não é este fator que vai levar à não diplomação dela, ou seja, que ela não tome posse.
Viomundo – E quanto ao impeachment?
Pedro Serrano — Impeachment não se confunde com a não diplomação. O impeachment tem a ver com um ato dela como presidente da República e não com a campanha.
O impeachment no presidencialismo não é a mesma coisa que o voto de desconfiança no parlamentarismo.
No parlamentarismo, o parlamento pode destituir o primeiro ministro por razões de conveniência e oportunidade política, porque é o parlamento que o indica e não o povo. O primeiro ministro é sempre um representante do parlamento. É um instituto semelhante ao recall no presidencialismo.
Viomundo – Doutor, explica melhor.
Pedro Serrano — Quando há um voto de desconfiança do Parlamento – não é porque o primeiro ministro cometeu um crime, mas porque, por exemplo, foi ineficiente, tem corrupção no governo. Não se julga a conduta pessoal do primeiro ministro.
Isso não existe no presidencialismo, onde quem elege o presidente é o povo. O presidente não é representante do parlamento. O parlamento não tem o direito de fazer um juízo de mérito político, para ficar julgando o governo e, com isso, retirar o mandato do presidente. Só quem tem legitimidade para isso é o povo.
O que há no presidencialismo, em caso do impeachment, é afastar o presidente da República, porque ele cometeu um delito. Isso se chama julgamento político, porque quem julga esse delito não é o Judiciário, mas o órgão político, que é o parlamento.
Mas é um julgamento, porque se está imputando ao presidente da República um delito no exercício da função de presidente. Isso se chama crime de responsabilidade. Crime praticado no exercício da Presidência da República enquanto tal.
Agora, para caracterizar isso tem que ser um ato praticado pela presidenta da República no exercício da sua função. Não é só. Tem de se demonstrar autoria e a culpabilidade. Além disso, tem de ser provado num processo com defesa, que é regulado na Constituição.
Então, não é um julgamento político no sentido de um juízo de conveniência e oportunidade. É um julgamento a partir de provas produzidas no processo.
A existência de corrupção no governo, se não houver prova da participação direta da presidente, não pode gerar processo de impeachment.
Irregularidades na campanha da presidente podem levar à sua não diplomação, mas não ao impeachment. Então, essa questão precisa ser analisada do tamanho que ela tem.
O que tem de se avaliar é se o impedimento foi praticado ou não de acordo com a Constituição. Se ele seguiu ou não, esses balizamentos que eu acabei de falar.
Viomundo – Mas existe o receio de que ocorra aqui o que houve em Honduras ou no Paraguai.
Pedro Serrano – Eu entendo esse receio. Agora, o que aconteceu em Honduras e no Paraguai é que foi um impeachment sem direito a defesa. O que significa que não foi impeachment realizado de acordo com a Constituição. Ou seja, foi golpe, mesmo. Mas não porque houve impeachment, mas porque esse impeachment não foi realizado de acordo com a Constituição.
No Brasil, as pessoas têm medo que se use a figura do impeachment para se praticar uma fraude à Constituição. E, portanto, um golpe.
O problema é que há radicais dos dois lados que ficam criando um debate desconectado da realidade jurídico- institucional. Isso gera um clima ideológico de tensão absolutamente inadequado ou desconectado da realidade.
Viomundo — Isso é perigoso?
Pedro Serrano – Acho que sim, porque vai criando no País um clima, que divorcia o sentimento das pessoas da realidade jurídico-institucional.
Viomundo – E se houver rejeição das contas de campanha da presidenta, o que acontece?
Pedro Serrano — Dilma tem como ir ao TSE. A decisão não é só do Gilmar Mendes, vai ser do plenário. Se o TSE rejeitar, ainda pode ir para o STF.
O Gilmar tem que decidir de acordo com a lei. E se ele decidir fora da lei, isso vai ser corrigido pelo plenário. E se não for corrigido pelo plenário do TSE, vai ser corrigido pelo plenário do STF.
O receio de não gerar a diplomação contribui mais para esse clima emocional político de que estou falando, divorciado da realidade jurídico institucional. E, aí, sim, é perigoso.
Na hora em que a gente se desconecta do que determinam a Constituição e as leis, acaba-se com as regras do jogo e isso pode ser uma tragédia.
A gente tem que se fixar às regras do jogo. São elas que garantem o processo democrático, inclusive o mandato da presidenta Dilma.
Ficar se divorciando da regra do jogo no discurso contribui para que não se preserve o mandato da presidenta e tudo saia do jogo democrático estabelecido.
Viomundo – Ou seja, nós, enquanto sociedade, temos de exigir que se cumpra a Constituição?
Pedro Serrano — Claro. Impeachment não é golpe, faz parte do jogo democrático. O que tem de se alertar a sociedade é sobre a possibilidade de se querer produzir um impeachment contra a Constituição. Isso, sim, é golpe. É o uso inadequado do instituto do impeachment previsto na Constituição.
Nós, democratas, temos de estar atentos ao cumprimento da Constituição. Tudo tem de ser balizado pela Constituição e pelas leis.
Quando a gente perde essa referência, acaba estimulando um clima altamente ideologizado, onde não há regras do jogo, vale o mais forte. E, aí, a consequência, é acabar arruinando a democracia.
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