Cabul, no ponto de ignição
29/8/2014, [*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline − Rediff blogs
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
POSTADO POR CASTOR FILHO
Base aérea de Bagram, no Afeganistão (vista aérea de topo) |
Reduzir a vida é muito mais difícil do que expandi-la. Acabo de tropeçar em matéria emocionante, triste, no canal da NPR, sobre o desmonte da gigantesca base aérea Bagram, dos EUA, ao norte de Cabul, de onde os norte-americanos estão em retirada. Já saíram de lá quantidade equivalente a seis campos de futebol de objetos e lixo acumulados pelos soldados durante a estada de 13 anos, e restam agora, a serem tirados, mais quatro campos de futebol. E há também itens que serão mandados “para casa” onde “provavelmente serão armazenados para futuras guerras” ou voarão diretamente em gigantes C-17, para as bases dos EUA no Golfo Pérsico, para guerras iminentes na Mesopotâmia e no Levante.
O estômago dá um nó. Porque, naquele fechamento caótico, a vida avança e há sinais de que surgem os primeiros brotos – visões bizarras de gente começando a construir em Bagram, antecipando o fim da estada sem-fim dos EUA no país – desde, claro, que o pacto EUA-afegão seja cumprido, quer dizer, se o Afeganistão conseguir, afinal, ter novo presidente, afinal...
O presidente Hamid Karzai está um passo à frente dos norte-americanos de Bagram. Já fez as malas e está pronto a sair do palácio presidencial na 3ª-feira próxima (2/9/2014), data fixada para a posse de seu sucessor. Deixa para trás o mobiliário, mas leva seus livros, todos. Talvez agora, aposentado, tenha tempo para ler tantos livros que jamais leu.
Jan Kubis |
Mas mesmo assim, Karzai é dos sábios, aristocrata herdeiro de gerações de sabedoria acumulada, orgulhoso filho de sua tribo de sangue azul. Assim sendo, já está fazendo transportar sua mudança para o “próximo palácio”.
Provavelmente está bem correto. É possível que não deixe, mesmo, o palácio presidencial na próxima 3ª-feira. O enviado especial da ONU, Jan Kubis, reuniu-se com Karzai para pedir que a data de 2/9/2014, para a posse, seja adiada, porque a auditagem das urnas e votos do segundo turno das eleições não estará concluída antes de 10/9/2014, na melhor das hipóteses.
É pedido que o presidente Barack Obama — ou, no mínimo, o secretário de Estado John Kerry – teria de apresentar pessoalmente a Karzai. Afinal de contas, Karzai foi posto para morar no palácio presidencial, originalmente, pelos EUA. Foi escolhido a dedo pelo antecessor de Obama, George W., como melhor homem para aquele serviço pelo qual ninguém jamais lhe agradeceu.
Hamid Karzai, Presidente do Afeganistão |
Apesar de tudo, Karzai acedeu ao pedido de Kubis. Sabia que Kubis falou-lhe em nome de Obama, que já não conversa diretamente com ele. Tudo virou inacreditável confusão. Teria de ser como foi? Se os EUA fracassaram e não venceram a guerra, nem toda a culpa é de Karzai. Nem é difícil entender por que Karzai passou, cada dia mais, a fazer aumentar a distância que o separava dos seus mentores em Washington.
Será que Kubis e Karzai fazem bem ao fixar nova data para a posse, para meados de setembro? Abdullah Abdullah já se desligou dos trabalhos de auditagem dos votos. É como detonar o processo de auditagem. Mas a ONU insiste em completar o serviço de recontar votos, mesmo sem ele.
Felizmente, Kubis, Karzai e Obama estão de acordo nesse ponto – de que a auditagem tem de ser completada, para que haja algum presidente, qualquer um, que possa ser empossado e evite-se assim um perigoso vácuo de poder em Cabul. Às vezes, a impressão que se tem é que o Afeganistão estaria muito mais bem parado se se cancelassem as anteriores e se fizessem novas eleições.
Mas a grande questão permanece – o que fará Abdullah, na sequência? E se, de repente, anuncia-se, ele mesmo, próximo presidente do Afeganistão? De fato, ainda que se assuma que o presidente eleito venha a ser Ashraf Ghani, a incerteza permanece muito grande.
Ashraf Ghani |
Importante não esquecer que o vice-presidente de Ghani é o homem-forte do uzbeque Rashid Dostum, afamado pelo temperamento volátil. Ghani é apoiado por Gulbuddin Hekmatyar, e ele próprio, pessoalmente, alinha-se com a tribo Kochi. Kandahar, no sul; Kunduz, no norte — dois centros nervosos cruciais — estão em torvelinho. E as notícias que se leem são as mais estranhas: “Chefe de polícia de Kandahar renuncia, depois de ordenar execução de prisioneiros Talibãs” e “27 cidadãos paquistaneses presos no Afeganistão”.
Karzai não participará da reunião de cúpula da OTAN em Gales, na 5ª-feira (4/9/2014), reunião na qual o Afeganistão “cresce como preocupação da agenda”. Claro que Karzai já fez as contas e concluiu que, dado o impasse total em Cabul, a OTAN não terá como decidir coisa alguma, com sua presença ou sem. Mas é também possível que ele não queira afastar-se de Cabul nesse momento, quando as coisas parecem estar-se aproximando do ponto de ignição.
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[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Oriente Médio, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de geopolítica, de energia e de segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu e Ásia Times Online, Al Jazeera, Counterpunch, Information Clearing House, e muita outras. Anima o blog Indian Punchline no sítio Rediff blogs. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala, Índia.
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