Thierry Meyssan: O Brexit, a UE e a democracia

 | DAMASCO (SÍRIA) 

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A quando da dissolução da URSS, a França e a Alemanha tentaram conservar o seu lugar no mundo resolvendo o problema do seu tamanho face ao gigante norte-americano. Decidiram portanto reunificar as duas Alemanhas e de se fundirem conjuntamente num Estado supranacional : a União Europeia. Seguros, face à sua experiência de cooperação interestatal, acreditaram ser possível construir este Estado supranacional apesar do diktat do Secretário de Estado James Baker para alargamento forçado a Leste.
Durante os debates sobre o Tratado de Maastricht, os gaullistas confrontaram o «supranacionalismo europeu» com o «soberanismo». Eles equiparavam o quadro nacional à democracia e a escala europeia à burocracia. Pelo contrário o Presidente François Mitterrand e o Chanceler Helmut Kohl, para vencer a sua resistência, começaram por baralhar o soberanismo democrático (só o Povo é soberano) e o soberanismo nacionalista (a Nação é o único quadro conhecido para exercer um Poder democrático). Depois equipararam toda e qualquer forma de «soberanismo» a «chauvinismo» (ou seja, o facto de se considerar excelente tudo aquilo que é nacional e de desprezar tudo o que é estrangeiro).
Este Tratado foi adoptado e transformou um sistema de cooperação interestatal (a Comunidade Económica Europeia) num Estado supranacional (a U.E.), quando ainda nem sequer existia uma «nação europeia».
Ao mesmo tempo reescrevem a História para equiparar o nacionalismo à guerra e para apagar os traços das políticas chauvinistas anti-Russas. A França e a Alemanha criaram um canal de televisão binacional, o Arte, cujos programas deviam apresentar o nazismo e o sovietismo como sendo dois regimes totalitários originados pelo mesmo conceito de nacionalismo. Confundiu-se o nacionalismo alemão com o racialismo nazista (muito embora este seja incompatível com a ideia nacional germânica, baseada na língua e não na raça). E, apagaram-se os traços dos esforços soviéticos para selar uma aliança anti-nazi antes da guerra. Deste modo, mudou-se o significado do Acordo de Munique e do Pacto Molotov-Ribbentrop [1].
Trinta anos mais tarde, as instituições concebidas a 6 e desenvolvidas para 12 provaram ser ingeríveis a 28, tal como haviam antecipado os Estados Unidos. A União Europeia tornou-se um gigante económico, mas continua a não existir nenhuma noção de "Nação" europeia. Os povos europeus perderam em grande medida a sua soberania democrática, e os seus Estados perderam a sua soberania nacional, mas continua a não existir um objectivo político comum.
Basta perguntar a um soldado do embrião de exército europeu se está pronto a «morrer por Bruxelas» e observar o seu ar espantado para medir a amplitude do desprezo por tal : ele está pronto a dar a vida apenas pela sua Nação, não pela União Europeia.
O mito, segundo o qual «A UE, é a paz», ter-lhe-á valido o Prémio Nobel da Paz em 2012, mas
- Gibraltar continua a ser uma colónia britânica em território espanhol [2];
- a Irlanda do Norte, uma outra colónia em território irlandês ;
- e sobretudo, o Norte de Chipre continua a ser ocupado pelo Exército turco [3].
A França e a Alemanha acreditaram, erradamente, que, com o tempo, os particularismos britânicos vindos da História se dissolveriam no Estado supranacional. Isto era esquecer que o Reino Unido não é uma República igualitária, mas sim uma Monarquia parlamentar de classe.
Devido aos restos do seu império colonial na Europa Ocidental, o Reino Unido jamais pode aderir ao projecto franco-alemão de Estado supranacional. Ele recusou trechos inteiros do Tratado de Maastricht entre os quais a sua moeda supranacional, o euro. A sua lógica interna empurrava-o irresistivelmente a reforçar a sua aliança com os Estados Unidos, com o qual partilha a mesma cultura assim como uma parte das elites. Pareceu-lhe mais eficaz conservar a sua influência no mundo apoiando-se na força militar de Washington, do que na força económica de Bruxelas. Foi por isso que, em 2000, a Administração Bush encarou incluir o Reino Unido na Alena e organizar a sua saída da UE [4].
O facto é que o Parlamento britânico nunca acabou por escolher entre os dois lados do Atlântico. Foi preciso esperar até ao Referendo de 2016 para que o povo decidisse escolhendo o Brexit. Mas a eventual saída britânica da UE abriu de novo uma ferida que se havia esquecido. A criação de uma fronteira aduaneira entre as duas Irlandas põe em causa o acordo de paz irlandês (dito como o «Acordo de Sexta-feira Santa») entre a República da Irlanda e o Reino Unido. Ora, este foi concebido não para resolver o problema mas para o congelar (recorrendo ao princípio religioso de consociatio).
O sistema político britânico é fundado na bipolarização. Isto está fisicamente inscrito nos bancos da Câmara dos Comuns, onde os Deputados estão sentados frente a frente e não em hemiciclo. Ora, o Brexit levanta, ao mesmo tempo, duas questões existenciais: a pertença ou não à UE e a manutenção da colonização na Irlanda do Norte. Todos puderam constatar no decurso dos últimos três anos que a Câmara não conseguiu chegar a nenhuma maioria em qualquer uma das quatro opções possíveis. Esta situação afectou gravemente a economia britânica. Segundo um relatório confidencial de Coalition, as comissões bancárias rendem cada vez menos na City e cada vez mais em Wall Street agora. A supremacia financeira britânica declina desde 2008 e está em vias de se afundar.
O sistema político britânico é pragmático. Nunca foi pensado noutro sentido e nunca foi passado a escrito. É o fruto de mil anos de confrontos e relações de força. De acordo com o estado actual da tradição constitucional, o monarca só dispõe do Poder quando a sobrevivência da Nação está em jogo [5]. Foi por isso que a Rainha decidiu suspender («prorrogar») o Parlamento para permitir ao seu Primeiro-ministro desbloquear a situação. Em tempos normais, a Rainha só tem o direito de suspender o Parlamento por razões técnicas (uma eleição por exemplo) e nunca para colocar a democracia entre parênteses.
É muito interessante observar a emoção provocada no Reino Unido pela decisão da Rainha. Todos aqueles que se opuseram ao Brexit percebem que passaram três anos em discussões estéreis e atingiram o limite da democracia. Alguns, inclusive no continente europeu, descobrem com espanto que a democracia pressupõe a igualdade de todos os cidadãos e é, portanto, incompatível com o que resta de uma monarquia de classe.
Este desprezo reenvia-nos até à criação das instâncias europeias baseadas no modelo imaginado por Winston Churchill. Para ele, nunca se tratou de unir democracias, ou de criar um estado supranacional democrático, mas de prevenir a existência de uma potência hegemónica no continente europeu. Quer dizer, ao mesmo tempo impedir a Alemanha de se reerguer e fazer face à União Soviética [6]. Contrariamente aos slogans (eslogans-br) que ele admiravelmente manejou, não se tratava de oposição ao modelo comunista, mas sobretudo de prosseguir a política que tinha aplicado durante a Segunda Guerra Mundial: enfraquecer as duas principais potências continentais, a Alemanha e a URSS, que ele deixou baterem-se sozinhas, uma contra a outra, de Junho de 1941 a Setembro de 1943, sem intervenção de nenhum exército britânico, colónias incluídas.
Não é portanto de espantar que François Mitterrand, o qual participou ao lado de Winston Churchill no Congresso fundador de Haia, em 1948, não se tenha inquietado com o déficit democrático do Estado supranacional que ele imaginou com Helmut Kohl aquando da dissolução da URSS.
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Boris Johnson é um puro produto do Eton College, muito embora em parte criado nos Estados Unidos (ele renunciou em 1996 à nacionalidade dos EUA para se candidatar à Câmara dos Comuns). É um discípulo de duas grandes figuras do Império Britânico. Primeiro de Benjamin Disraeli, o Primeiro-ministro da Rainha Victoria. Dele tomou emprestada a sua concepção de «conservadorismo de nação» (Conservatism One Nation) : a riqueza confere uma responsabilidade social; a elite (upper class) tem o dever de dar trabalho às classes pobres a fim de que todos fiquem no seu lugar. Depois, de Winston Churchill ao qual ele consagrou um livro [7].
Theresa May havia sucessivamente encarado três vias diferentes para compensar a saída da UE : Tornar-se a agente de câmbio do yuan chinês no Ocidente, reforçar a «relação especial» com Washington [8], e reavivar a Commonwealth (Global Britain). Boris Johnson, quanto a ele, está no quadro de continuidade dos seus modelos focando-se (se focalizando-br) na «relação especial» com os Estados Unidos e, para isso, tendo-se atirado para os braços do Presidente Trump durante o G7, muito embora não partilhe as suas opiniões nem na economia, nem na política internacional. É igualmente lógico que tenha descaradamente mentido contra a Rússia por ocasião do escândalo Skripal [9], e que ele deseja não apenas a saída britânica da UE, seja qual for o preço, mas prioritariamente a sabotagem desta aventura supranacional continental.
Se Boris Johnson permanecer como Primeiro-ministro, a política internacional da «Pérfida Albion» seria a de influenciar Washington e de instilar conflitos entre Bruxelas e Moscovo.
Tradução
Alva
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[1] « Petite leçon d’histoire à Justin Trudeau », par Michael Jabara Carley, Traduction Mouhamadou Mourtada Fall, Strategic Culture Foundation (Russie) , Réseau Voltaire, 7 septembre 2019.
[2] “Para a UE, Gibraltar é agora uma «colónia» da Coroa”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de Fevereiro de 2019.
[3] “Cerca de 200.000 Cipriotas não poderão votar nas eleições europeias”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Maio de 2019.
[4The Impact on the U.S. Economy of Including the United Kingdom in a Free Trade Arrangement With the United States, Canada, and Mexico, United States International Trade Commission, 2000.
[5] “Isabel II suspende o Parlamento Britânico”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 2 de Setembro de 2019.
[6] « Discours de Fulton sur le "rideau de fer" », « Discours de Winston Churchill sur les États-Unis d’Europe », par Winston Churchill, Réseau Voltaire, 5 mars et 19 septembre 1946.
[7The Churchill Factor: How One Man Made History, Boris Johnson, Riverhead Books (2014).
[8] “Theresa May addresses US Republican leaders”, by Theresa May, Voltaire Network, 27 January 2017.
[9] “Peritos militares britânicos contradizem Theresa May”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 7 de Abril de 2018. « L’affaire Skripal : le mensonge de trop ? », par Michael Jabara Carley, Traduction Jean-Marc Chicot, Strategic Culture Foundation (Russie) , Réseau Voltaire, 23 avril 2018.

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Thierry MeyssanIntelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).