Bolívar, Garibaldi e Gramsci:emancipação e revolução

por Luis Britto García - Tlaxcala - 26/01/2017

Traduzido por  Omar L. de Barros Filho


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No ano em que o bicentenário do nascimento de Giuseppe Garibaldi proporciona diversas releituras de seu protagonismo político e social, ViaPolítica apresenta, traduzido do espanhol para o português, o conteúdo integral da intervenção do advogado, jornalista e escritor venezuelano Luis Britto García no simpósio internacional Libertad y liberación: Bolívar, Garibaldi e Gramsci, realizado em Caracas, de 17 a 20 de julho de 2007, na Fundação CELARG. O debate ganha em atualidade à medida que os países da América Latina – onde o Brasil está inserido, gostem ou não os nacionalistas ferrenhos – tratam de atravessar uma rara etapa democrática que oportuniza transformações políticas, sociais e institucionais. A revisão histórica assume, então, na atualidade, grande importância para abertura e compreensão dos novos caminhos e alternativas para nossas sociedades em crise.


A relevância desse debate está plenamente expressa no trecho que reproduzo a seguir, e que, antecedendo a apresentação de Luis Britto García, resume o pensamento que orientou a organização do evento na capital venezuelana. “Bolívar, Garibaldi e Gramsci são três figuras paradigmáticas que podem, historicamente, representar, através de sua história biográfica, ações políticas e suas obras, a relação inseparável entre a liberdade e a libertação. O primeiro, formado pelas grandes escolas do constitucionalismo europeu e suas fontes iluministas, deu força a um projeto de libertação que segue sendo a base das políticas de integração democrática do continente latino-americano. O segundo, inspirado pelas ideologias do republicanismo democrático de Mazzini e pelo primeiro socialismo igualitário, tornou possível, com suas iniciativas de liberação, a emancipação de povos e nações oprimidas mais na Europa que na América. O terceiro pagou com o cárcere e a vida a luta para a realização de um ideal de liberdade socialista que surge, ainda hoje em dia, depois do fracasso do comunismo dogmático e totalitário, como um ponto de referência para a compreensão de tantas insuperáveis contradições da contemporaneidade: o modelo econômico pós-fordista, a democracia como consentimento e participação, o papel das culturas populares nacionais e os intelectuais nas necessárias reformas morais e sociais do novo milênio.”-Omar L. de Barros Filho

As duas façanhas mais inspiradoras para revolucionários italianos e latino-americanos são a de Simón Bolívar e a de Giuseppe Garibaldi. Ambos empreendem lutas de emancipação política para cortar os vínculos externos que sujeitam seus povos a soberanias estrangeiras. Ambos emancipam para unificar povos liberados. Ambos promovem idéias republicanas, democráticas e de secularização do Estado, e com as limitações próprias de cada época, planos de reforma social e econômica. Os dois emancipadores sofrem um destino patético: culminada a epopéia militar, forças obscuras truncam seu projeto político e social. Disse Voltaire que os profetas armados sempre derrotaram os desarmados. Dois profetas invencíveis parecem aniquilados por forças sem rosto e sem armas. Invoquemos ao profeta desarmado Antonio Gramsci para identificá-las.

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Antes de tudo, desentranhemos as relações entre lutas de emancipação e revoluções. Mentalidades neocoloniais desqualificam todo o patriotismo e taxam de delito a aspiração dos povos em desenvolvimento de não serem governados por estrangeiros, enquanto que eles se esforçam em preservar incólumes indissolúveis e invioláveis lealdades políticas, jurídicas e ideológicas com poderes imperiais. Depois da globalização do capital, a transnacionalização da cidadania. O certo é que as guerras de emancipação política ou liberação nacional são episódios da luta de classes. Nelas, uma classe dominante, para expulsar a outra, chama em seu auxílio as castas dominadas, como ocorreu com os brancos crioulos na América. Ou bem uma classe dominada quase aniquila a dominante, como fizeram os escravos com seus amos no Haiti, os camponeses asiáticos com japoneses e colonialistas europeus na Revolução Chinesa, e os camponeses antilhanos na Revolução Cubana. A emancipação se converte em revolução quando arrebata à classe dominante tanto seus explorados como seu exército e seus aparatos ideológicos.

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Emilia RondónAssim, Bolívar culmina a campanha de emancipação política iniciada pela oligarquia local dos brancos crioulos contra os peninsulares, mas esta só se decide quando os independentistas convocam em sua ajuda os indígenas, escravos, pardos e brancos marginalizados. Para criar um novo exército, Bolívar oferece a liberdade aos escravos que se alistem, reparte títulos de terras entre os milicianos, libera os indígenas da servidão. Vale dizer, todo processo de emancipação política marcha no mesmo passo que seu projeto de emancipação social. A Independência não só corta vínculos com a monarquia espanhola: também lhe fecha toda a posteridade na América ao impor instituições republicanas que constituem uma revolução política equivalente à francesa. O projeto emancipatório não pode, entretanto, unir grandes blocos geopolíticos para equilibrar a influência estadounidense e européia. O Congresso do Panamá falha no intento de consolidar uma federação americana com exércitos sob direção comum. A Grande Colômbia, que unificava a capitania geral da Venezuela e o vice-reinado de Nova Granada, se dissolve pouco antes da morte de El Libertador. Os líderes independentistas se apoderam das terras concedidas a seus soldados; mantêm a escravidão e confiscam o poder político reservando o exercício do voto para os proprietários, nesse prolongamento da sociedade de castas que será denominada República oligárquica.

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Apliquemos a esta permanência de superestruturas as categorias de análises de Gramsci. Na América recém emancipada apenas variam as forças produtivas: escravos e trabalhadores semifeudais seguem explorando minas e latifúndios com técnicas arcaicas. Apenas se alteram as relações de produção baseadas na escravidão e a semiescravidão por dívidas de trabalho assalariado. O mesmo bloco hegemônico exerce quase idênticos poderes mediante instituições religiosas, educativas e meios de comunicação que apenas se modificam. Os próceres que se transformam em latifundiários aliam-se ao bloco dominante e exercem proveitosos despotismos. Aqueles que tentam reformas são assassinados, como Antonio José de Sucre, ou empurrados ao exílio, como Bolívar e San Martín. As reivindicações pendentes se dirimirão depois em sangrentos conflitos fratricidas.

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Igualmente galharda e trágica é a gesta de Giuseppe Garibaldi. Tem por cenário dois mundos, onde se reúnem exércitos não convencionais para alcançar brilhantes triunfos militares. Como Bolívar, assume a emancipação política como plataforma para um projeto integrador, neste caso o da unidade italiana. Livra uma guerra de emancipação pelo Uruguai e três pela Itália; participa na contenda franco-prussiana e abriga projetos de libertação da Grécia, Croácia e Hungria. Também batalha por estruturas modernizantes: igualdade jurídica garantida por governos laicos, republicanos e democráticos, e por reformas econômicas e sociais.

Assim, depois do desembarque dos Mil em Marsala e a assunção da ditadura em nome de Vittorio Emanuele II, Garibaldi promete uma reforma sobre os latifúndios, a eliminação de tributos e de cânones sobre as terras. Essas promessas atraem a suas fileiras legiões de camponeses que lhe facilitam sua grande vitória em Calatafimi e a continuação da campanha para o Norte. Em nome de Garibaldi os camponeses invadem os feudos dos barões latifundiários e as terras comunitárias; Mazzini, por sua parte, propõe uma constituinte que institucionalize a propriedade das terras invadidas. Todas essas iniciativas ficam no ar diante do temor de uma expedição de Napoleão III e de uma guerra camponesa que poderia entorpecer o desenvolvimento industrial do Norte.

Em definitivo, Garibaldi se vê forçado a aceitar a monarquia de Vittorio Emanuel e as concessões de Cavour para não dificultar a quase culminada unidade italiana, que ficará inconclusa até a entrada do século XX no chamado Irredentismo. Consciente da frustração de seus projetos republicanos, depois de ser eleito deputado, renuncia ao Parlamento italiano, em 1870, para retirar-se a uma espécie de exílio interno na ilha de Caprera, até sua morte em 1882.

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Os brilhantes comandos militares e políticos de Bolívar e Garibaldi foram tão decisivos para o triunfo de seus projetos emancipadores como ineficazes para o alcance de seus planos unificadores e modernizantes. Para o segundo caso, Gramsci assinala com nitidez como a ausência ou a morosidade de um programa de reivindicações políticas e sociais retardou o processo:

“ No Risorgimento italiano pode ser observada a desastrosa falta de direção político-militar, especialmente no partido d´Azione (por incapacidade congênita), mas também no partido piamontés-moderado, igualmente antes e depois de 1848, e não por incapacidade, com certeza, porém por “maltusianismo econômico-político”, ou seja, porque não queria aludir sequer a possibilidade de uma reforma agrária nem convocar uma assembléia nacional constituinte, mas sim que tendia simplesmente a conseguir que a monarquia piamontesa se estendesse por toda a Itália sem condições nem limitações de origem popular, com a mera sanção dos plebiscitos regionais”. (Gramsci: Escritos políticos (1917-1933), Siglo XXI editores, México 1977, p.349)

Vale dizer, não existe processo emancipatório de proveta, que não envolva reivindicações econômicas e sociais. Mas, após a gesta de Garibaldi, as forças produtivas e as relações de produção que mantinham a propriedade agrária feudal e o incipiente capitalismo italiano tampouco foram quase alteradas. Religião, aparato educativo e meios de comunicação sofreram poucas transformações. O compacto bloco hegemônico ficou livre das diversas dominações estrangeiras quase sem experimentar modificações, deixando pendentes agendas que dariam lugar a exacerbadas lutas políticas e sociais.

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Todos somos herdeiros de Bolívar, de Garibaldi e de Gramsci: tanto de seus esplendorosos triunfos militares e intelectuais como de suas agendas inconclusas. Em alguns países desenvolvidos, os movimentos revolucionários se estancaram. Nos dependentes, dinâmicos processos de emancipação política ou de descolonização coincidem com tomadas de controle de forças produtivas, irresistíveis mobilizações sociais e reestruturações ou realinhamentos da lealdade dos exércitos. Assim como um processo de emancipação não marcha sem programa econômico e social, o programa social e econômico pode converter a emancipação em revolução. As espadas de Bolívar e de Garibaldi e a reflexão de Gramsci têm ainda muito que fazer no mundo. Armas libertadoras e pensamento esclarecido capaz de conquistar infra-estruturas produtivas e superestruturas ideológicas são nossas primeiras necessidades.
 
De Marsala a Caracas, as mesmas camisas vermelhas...



Luis Britto García 


Muito obrigado a Tlaxcala
Fonte: http://www.aporrea.org/ideologia/a38657.html
Data de publicação do artigo original: 22/07/2007
URL deste artigo: http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=19758 

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