Por trás das ações paramilitares para desestabilizar a Venezuela

Nos últimos dias temos acompanhado o desenrolar de um tensionamento na fronteira entre Colômbia e Venezuela. A zona é conhecida por ser atribulada politicamente. Os conflitos iniciaram após um ataque de paramilitares colombianos contra soldados venezuelanos no estado de Táchira. Como consequência disso o governo da Venezuela ordenou o fechamento da fronteira neste estado e outras regiões do país.

Por Mateus Fiorentini


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A AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), é um dos principais grupos terroristas paramilitar de extrema-direita da ColômbiaA AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), é um dos principais grupos terroristas paramilitar de extrema-direita da Colômbia
Segundo o governo da Venezuela, os paramilitares colombianos estariam desenvolvendo ações que visam organizar grupos armados paraestatais para desestabilizar o mandato do presidente Nicolás Maduro. Diante disso, inúmeras iniciativas foram tomadas para buscar uma solução diplomática para o caso.

Para que possamos compreender melhor o conflito na fronteira colombo-venezuelana conversamos com Pietro Alarcón. Professor de Direito Constitucional e Relações Internacional da PUC-SP. Ele é colombiano residente no Brasil há vários anos e representa o Comitê Permanente pela Defesa dos Direitos Humanos com sede na Colômbia (http://www.comitepermanente.org).

Leia a entrevista na íntegra: 



Temos acompanhado nos últimos dias uma agitação na região fronteiriça entre Colômbia e Venezuela. O que está por trás desse fato?
R: Os conflitos de fronteira entre Colômbia e Venezuela não são recentes. São mais de 2000 quilômetros e é uma região bastante porosa, de um comércio legal e ilegal intenso, praticamente desde a segunda metade do século 20. Os controles tradicionalmente são mínimos nos dois países. Por isso nunca foi raro escutar falar de conflitos locais. Isso me parece importante dizer, porque do lado da Colômbia, por exemplo, nunca houve uma atenção dirigida a essa região. Sempre foi uma fronteira abandonada a sua sorte.

Agora, naquilo que tem a ver com os acontecimentos dos últimos dias, eu considero que devemos ter uma leitura mais precisa e focada. Isso porque para além das causas que poderíamos chamar, por assim dizer, de tradicionais, e que acabei de mencionar, o pano de fundo dos mais recentes conflitos tem outro componente, relacionado com o papel que cada Estado ocupa atualmente dentro do contexto geopolítico, de segurança regional, de iniciativas e planos concretos de desenvolvimento integrado e sobretudo, relacionado às dificuldades internas de cada um.

Eu poderia te dizer que há mais de 4 décadas a Venezuela tem recebido colombianos de todo tipo. Mas, especialmente - assim como o Equador, pelo lado do sul do país, - tem recebido os refugiados, os migrantes forçados por causa do conflito social e armado interno e também os migrantes forçados pelas crises econômicas da Colômbia, pelo abandono da região, pela ausência de uma política de fronteiras.

Há uma migração que, teoricamente, denomina-se “migração mista”, ou seja, de causas diversas. E também é importante considerar que o atendimento, de maneira geral, aos deslocados internos na Colômbia nunca foi adequado ou conforme os requerimentos do Acnur e as diversas entidades de direitos humanos, muito menos o foi para os migrantes forçados no exterior.

E isso tem uma consequência concreta, a migração forçada ou por causas econômicas sempre foi muito explorada pelas máfias do narcotráfico, do contrabando, do comércio ilegal de armas, gerando situações de ordem pública de dimensões variáveis. Os especuladores e negociadores, em conjunto com segmentos interessados na desestabilização da região promovem – e não é de hoje – uma situação muito delicada. Eles adquirem todo tipo de produtos na Venezuela, estocam e os comercializam na Colômbia. Os Estados da federação venezuelana na qual se registram esses dados são especialmente Táchira e Zúlia, que são opositores ao governo de Maduro.

O governo da Venezuela realizou uma intervenção na região, determinou a deportação dos colombianos involucrados nas práticas ilegais, porque comprovou que também, aliado a tudo isso que tradicionalmente acontece, existe uma infiltração enorme de grupos paramilitares, o que não resultaria difícil de explicar, porque eles ainda subsistem na Colômbia e são reconhecidos pela opinião pública como os grandes inimigos do processo de paz. Processo que tem a Venezuela como um membro facilitador.

Ou seja, a questão hoje é mais complexa. Logicamente, é preciso exigir um tratamento digno para todos seres humanos, com plena independência da nacionalidade. E a deportação deve-se dar com as garantias para casos desta natureza. Mas, não há como duvidar que se trata de algo fora do comum.

Explico e te reitero, Venezuela, embora tenha suas dificuldades, é um dos Estados mediadores do processo de paz de Havana. Um dos Estados que garante o processo. Isso gerou inimigos na Colômbia, em particular os setores ligados ao paramilitarismo, o ex-presidente [Álvaro] Uribe e vários outros setores dentro da cúpula das forças armadas. E é precisamente o paramilitarismo quem tem realizado incursões no território venezuelano, transpondo as fronteiras e gerando uma primeira reação do Estado da Venezuela e o que motivou o fechamento das fronteiras.

Por isso não é de se estranhar que as máfias colombianas e venezuelanas, beneficiadas com o contrabando, ligadas aos setores mais reacionários dos dois países, que inclui drogas e armas, tenham todo o interesse em fomentar a discórdia e promovam atividades para desestabilizar o governo da Venezuela e exijam do governo colombiano uma posição beligerante e guerreira.

Do meu ponto de vista, o objetivo é minar o processo de paz e continuar com a velha ideia de fomentar um papel desestabilizador da política externa da Colômbia no cenário regional. Acho que o governo colombiano tem que rejeitar essas vozes que clamam por guerra e assumir que a premissa e a amizade bolivariana, a unidade franca e aberta. É preciso construir uma fronteira de paz e para a paz e esta é uma oportunidade. Os dois países, a partir de um diálogo direto, tem que combater com uma estratégia conjunta, com amparo constitucional e legal, com fundamento em princípios de direito internacional, aos especuladores e máfias do contrabando, ao paramilitarismo e a todos os aproveitadores das desgraças e infelicidades dessas pessoas migrantes e refugiadas.

Mas autoridades colombianas têm dito que a Colômbia tem que protestar perante o Conselho de Segurança da ONU, a Corte de Haia e até o Tribunal Penal Internacional. Qual sua opinião a respeito?
Há que entender que na diplomacia contemporânea, bravatas não tem mais cabimento. A exigência dos povos é a paz e o respeito pela vida e dignidade das pessoas. Isso tem que ser resolvido bilateralmente, como já vem sendo feito com a ajuda da Celac e da Unasul. Veja bem, Colômbia ameaça levar a Venezuela à Corte Penal Internacional, mas tem vários processos abertos por desaparecimento forçado ocasionado pelos seus agentes estatais e várias demandas pelos chamados “falsos positivos” apresentados pelo Exército.

Por isso, acho que é preciso refletir com mais calma, a partir de uma diplomacia construtiva e sem nacionalismos ultrapassados, conscientes de que se trata de povos irmãos e com um passado comum, que tem todas as possibilidades de equacionar as diferenças de fronteiras, sempre e quando se realize um debate com fundamento no que realmente acontece. Os fundamentos desse diálogo são a autodeterminação dos povos, a não intervenção nos assuntos de cada um e a máxima efetividade do direito à paz na região.

Na Cúpula de Presidentes e Chefes de Estado da Celac, realizada em Havana, a América Latina foi apontada como "região de paz". Quais os impactos que a atual situação da fronteira entre os dois países traz para o processo de integração regional e para a paz no continente, tendo em vista inclusive o papel que a Venezuela cumpre no processo?
Me parece que há duas questões importantes na tua pergunta. A primeira é que existe uma aspiração histórica dos povos da América Latina e do Caribe, que consiste em tornar a região uma região de paz. Para isso já existiram tentativas importantes, tratados assinados, como o conhecido Tratado de Tlatelolco, concluído em 1967, que proscreve o uso de armas nucleares no continente.

Entretanto, não existiram ainda os elementos fáticos suficientes para poder implementar uma estratégia global de paz. Nem sempre a OEA tem conseguido jogar o papel de fiel depositário do jus belli, do direito de fazer da guerra, especialmente pela maneira como as potências e os Estados Unidos se posicionam com relação aos Estados latino-americanos.

Observa que isso tem acontecido muito, embora as Constituições dos Estados proclamem o direito à paz como um direito dos povos, e que a Carta da ONU estabeleça ou pressione os Estados a tomarem iniciativas para a paz e a segurança. A própria Constituição do Brasil orienta a conquista em matéria de integração de uma comunidade latino-americana de nações sobre a base da cooperação e da prevalência dos direitos humanos.

Sustento que não existem os elementos fáticos porque o problema da segurança coletiva regional não consiste apenas na construção de valiosos documentos, mas no compromisso e vontade que se manifesta em cumprir com os postulados que ali se encontram. Veja-se por exemplo, o país que é sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ou seja, os Estados Unidos, não ratificou a Convenção Americana. Esse é um grande paradoxo. Mais recentemente, os impactos da Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos na América Latina evidenciaram-se na militarização e na fusão imprensa-propaganda militar. O objetivo desta última consistia em criar no inconsciente coletivo o conceito debellam justus – guerra justa – para convocar os exércitos a uma cruzada contra o terrorismo e suas manifestações.

No terreno regional essa visão alimentou expectativas intervencionistas – Plano Colômbia, Plano Patriota, por exemplo – especialmente diante da emergência e ascensão de movimentos contestadores das suas orientações econômicas e políticas e governos de propostas ancoradas numa agenda de crescimento com redistribuição do ingresso, soberania econômica e monetária e recuperação e domínio dos seus recursos naturais.

Nesse marco não há como esquecer o tema das bases militares no continente. Só na Colômbia são 7 bases militares dos Estados Unidos, e na América Latina toda são 36. Essas bases militares constituem uma séria ameaça militar.

O outro tema na tua pergunta é o da integração regional. É claro que um conflito como o que atualmente tem como protagonistas a Colômbia e Venezuela gera desconforto para a integração. Mas, os problemas da integração são de uma dimensão bem maior.

Há que lembrar que a Colômbia foi a sede da primeira reunião da Aliança Pacífica, numa estratégia mais ligada ao comércio com fundamento em abertura de portos e investimentos estrangeiros com tratamento preferencial para alguns capitais, dentre eles o financeiro, no estilo muito diferente daquele que é promovido pela Venezuela com a Alba, por exemplo. A Venezuela trabalha com uma proposta de integração fundada na rejeição dos TLCs – tratados de livre comércio - bem como dos modelos de extrativismo. Que na Colômbia são um problema grave hoje em dia por conta do sucateamento dos recursos naturais.

Esta reunião da Unasul realizada no dia 21, que foi promovida pela representação da Argentina e acolhida pela Presidência pró tempore do Uruguai para tratar especialmente desta situação de fronteiras entre Colômbia e Venezuela, se trata de uma reunião importante porque, te reafirmo, é preciso retomar o diálogo para trabalhar em prol da construção de uma fronteira de paz.

Qual o atual estágio dos diálogos?*
Te comento algo de início: na Colômbia, qualquer opinião sobre o tema dos diálogos deve partir da base de que comprovadamente não há solução militar possível ao conflito armado do país. Agora, logicamente, há ainda desconfianças que precisam ser superadas pelas partes. Os diálogos, ainda assim, implicam um reconhecimento de que através das conversações é possível chegar a um acordo duradouro.

Logo acho importante remarcar que estamos falando de um conflito de mais de 50 anos, de mais de 200 mil vidas que se perderam, além de mais de 5 milhões de deslocados internos, homens e mulheres refugiados dentro do território nacional, numa das situações mais dramáticas do planeta. É uma tragédia humanitária que tem se alastrado por décadas. Então são diálogos pautados por uma sensibilização muito grande. É preciso muita prudência a cada passo.

No período mais recente, no dia 30 de agosto terminou um ciclo de conversações e no dia 11 de setembro começou outro. Explico, em cada ciclo há reuniões de subcomissões. Assim, por exemplo, no dia 30 de agosto em um comunicado das partes, se expressou que a subcomissão jurídica, que está encarregada da transição jurídica, da questão da impunidade, avançou na confecção do plano ou Sistema Integral de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição. Isso é bastante importante porque é um tema delicado. Trata-se da questão da justiça de transição. E de como isso eventualmente pode ser fundamento de uma nova Constituição para o país.

Por outro lado, outras subcomissões, como a que discute o fim do paramilitarismo, também avançou, ainda que com grandes dificuldades nesse tema, porque o paramilitarismo ainda é uma realidade na Colômbia, como instrumento de violência contra os trabalhadores e o movimento social em geral, ainda que setores do governo e até alguns dos seus representantes sustentem que já não existe.

Também houve avanços e audiências na subcomissão que discute o tema de gênero e na do Cesse bilateral das hostilidades.

Contudo, há duas questões importantes que merecem ser expostas: a primeira, que o Governo colombiano mantém um silêncio hermético sobre os pontos mais importantes da negociação. Me parece que a intenção continua a ser algo que fracassou nos diálogos anteriores e que consiste em não entender que há uma relação intrínseca entre a dinâmica social colombiana e o sucesso em Havana. Santos exige uma confidencialidade que impede conhecer alguns pontos mais concretos dos acordos aos quais chegam as partes. Não é possível criar artificialmente "duas Colômbias", uma em diálogos de paz e outra que continua com o modelo antidemocrático e excludente que já fracassou.

A segunda, que existe uma contradição enorme entre as possibilidades de paz a partir da modificação as causas da violência e o cenário atual colombiano. Há que acelerar e tomar medidas para tentar resolver o problema da terra, da propriedade, há que tomar medidas para redistribuição do gasto público. Esse é um problema dos colombianos que tem que ser resolvido como uma garantia real da passagem a um país com uma democracia sólida.

O movimento dos trabalhadores do campo ainda exige do governo o cumprimento dos pactos das negociações do ano 2013. E o governo continua a promover os tratados de livre comércio com amplas desvantagens para os produtores nacionais e que favorece o extrativismo das multinacionais e alguns poucos aliados das elites colombianas. Há uma espécie de jogo duplo em tudo isso.

A paz dificilmente será construída exclusivamente desde Havana, é preciso muita mobilização popular e apoio internacional sistemático, intenso. A presença recente do delegado do Secretário Geral da ONU e do da Presidência da Unasul é bastante significativa nesse sentido.

*A entrevista foi feita antes do acordo firmado entre o presidente Juan Manuel Santos e o líder das Farc, Timoleón Jiménez. 


No Vermelho.org - 27/09/2015

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