A política do escárnio e o ajuste nos programas do semiárido

O Programa Cisternas sofrerá um corte de R$210 milhões para R$140 milhões. Outros R$132 milhões serão cortados do Programa de Aquisição de Alimentos


Por Najar Tubino - na Carta Maior - 23/12/2015
Fernando Frazão / Agência Brasil
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Vinte mil sertanejos e sertanejas saíram às ruas de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE) para protestar contra os cortes nos programas que deram uma nova opção de vida aos 25 milhões brasileiros que vivem no campo nos nove estados que compõem o bioma caatinga. Esta é uma notícia que poucos terão acesso, basicamente, na região envolvida. O desprezo da oligarquia da mídia neste caso é literal: a oligarquia também é proprietária das emissoras de televisão, das rádios e de alguns jornais. O Nordeste completa quatro anos de seca e a previsão do INPE é para o prosseguimento nos próximos dois meses de 2016. Trata-se de um El Niño de grande intensidade equivalente ao de 1998, quando o abastecimento de água na região sofreu um colapso.
 

A Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), que é composta por mais de três mil organizações sociais, lançou um alerta de emergência nos últimos dias. Em 2015 pouco mais de 2.400 cisternas de consumo humano foram construídas, quase nada perto das 80 mil de 2014. O Programa Cisternas, coordenado pelo MDS, sofrerá um corte de R$210 milhões para R$140 milhões. Além disso, outros R$132 milhões serão cortados do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
 
“- O semiárido atravessa uma das mais severas e duradouras secas dos últimos anos. Mortes, êxodo, saques, filas intermináveis de pessoas para receber uma lata d’água ficaram na história como uma marca desumana das políticas. A virada dessa realidade se deu graças ao protagonismo do povo do semiárido aliado a essas políticas públicas adequadas. Reduzir esses programas sociais é cometer um dos maiores retrocessos na história do país e do semiárido brasileiro...em outras palavras: os pobres são mais uma vez condenados à fome e à sede porque o Congresso assim o decide”.
 
1,7 milhões de famílias com 4,2% das terras
 
Os R$10 bilhões que o relator da Comissão de Orçamento pretendia retirar do programa, não ocorreram. O corte atingiria 11 milhões de crianças e adolescentes. Mas as escolas rurais no semiárido estão fechando, o orçamento do Instituto Nacional do Semiárido (INSA) foi reduzido e ainda querem tirar a autonomia de pesquisa da entidade. A reforma agrária está parada no semiárido, porque uma portaria do INCRA proíbe a desapropriação de latifúndios na região onde é decretado o estado de emergência. No Semiárido, onde se concentra quase a metade da agricultura familiar brasileira, 1,7 milhões de famílias detêm 4,2% da terra, enquanto 1,3% dos estabelecimentos abocanham 38% das terras agriculturáveis.
 
Concentração de terra, de água, de riqueza, de poder, de conhecimento, política de combate à seca, doações esmolas, estes os atributos das políticas implantadas no nordeste brasileiros desde que o Império era a forma de governo. Qual foi a mudança nos últimos 13 anos? As políticas de convivência com o semiárido, o protagonismo social, o reconhecimento do papel das mulheres na execução dos programas, o reconhecimento do saber do povo, 45 tecnologias de captação de água e outras formas de proteger o solo, a biodiversidade, as nascentes, deste que é o único bioma genuinamente brasileiro.
 
Não vamos permitir o retrocesso
 
O nível dos reservatórios do semiárido está na faixa de 17%, é uma situação de extrema preocupação, reforçada pelas previsões da continuidade do El Nino que deve se estender até março. O colapso do abastecimento só não ocorreu porque são mais de um milhão de cisternas construídas, sem contar outras 135 mil tecnologias de captação de água para produção de alimentos. A comparação é a seguinte: 35 bilhões de litros de água nas barragens e açudes construídos no Nordeste, muitos em terras privadas ou sob controle da oligarquia. E 11 bilhões de litros d’água acumulados nas cisternas construídas.
 
“- Se não queremos voltar a integrar o Mapa da Fome da ONU, as políticas de convivência com o semiárido terão que ser garantidas e ampliadas. A eleição realizada em 2014 não se configurou para nós como simples eleição de uma pessoa. Escolhemos um programa de governo, que incluía as políticas de convivência com o semiárido. Lutar e defender a manutenção e ampliação dos nossos direitos e das políticas públicas que conquistamos com muito sofrimento. Não vamos permitir o retrocesso, a volta da fome e da miséria no semiárido e no Brasil”, diz o trecho da nota da ASA.
 
Caatinga só tem 1% preservado
 
O bioma caatinga está entre os mais vulneráveis num cenário de aumento das temperaturas globais o que coloca a região Nordeste em especial estado de alerta, registra o pesquisador Paulo Nobre no livro Desertificação de Mudanças Climáticas no Semiárido Brasileiro, produzido pelo INSA e o MCTI. Cita o caso do Vale do rio Pajeú, em Pernambuco, onde oito postos pluviométricos marcaram no período de 1961-2009 a diminuição média de 275 mm por ano de chuva, o que corresponde a uma queda de 57%. A caatinga só tem 1% de unidade de conservação com proteção total.
 
Tudo isso faz parte do poder político da oligarquia, que continua presente na história atual da região. Vamos a um caso concreto – da família Coelho que é considerada a oligarquia mais longeva do sertão do rio São Francisco. O pesquisador em ciências sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Ruyter Antônio Bezerra dos Santos, fez o retrato desse poder na tese de pós-graduação intitulada “Nas sombras da família Coelho: a dinâmica de uma dominação política”, de 2013.
 
Começou em 1745, quando o aristocrata Valério Coelho Rodrigues ganhou uma parte de uma sesmaria. E foi organizada no século XX por Clementino Coelho, comerciante da região, conhecido por Coronel Quelê, pai do ex-senador Nilo Coelho, um dos apoiadores da ditadura, governador imposto no período negro da história brasileira – 1967-1971, que dá nome ao Perímetro de Irrigação, que distribui água para a fruticultura industrial da região, onde a Monsanto mantém duas fazendas e um centro de pesquisa. Dos 14 filhos do coronel Quelê, sete entraram na política, que neste caso é uma ramo de negócio, responsável por administrar todos os recursos públicos federais, estaduais e municipais, em prol da oligarquia, como inventaram os gregos no período clássico – o governo de poucos para poucos.
 
Prefeitura de Petrolina controlada desde 1955
 
A máquina política abre as portas dos negócios em outras atividades. As gerações vão se sucedendo e o controle continua o mesmo. A prefeitura de Petrolina é administrada pelos Coelho desde 1955, mesmo um uma dissidência aberta por um membro da terceira geração, o atual senador Francisco Bezerra Coelho, neto do coronel Quelê, ex-ministro da Integração Nacional, do PSB, mas que já foi do PSD, sucessor da Arena, do PMDB e do PPS. Para a oligarquia os partidos são siglas, logotipos. A briga com o tio Oswaldo Coelho é um teatro para leigos. Quando Francisco Bezerra Coelho era ministro deu o cargo de consultor do Conselho Nacional de Irrigação para o tio e a chefia da Companhia de Desenvolvimento dos vales dos São Francisco e Parnaíba (CODEVASF) para o irmão Clementino.
 
Em Petrolina, Oswaldo, que se considera o chefe político da família, apoiou outro candidato à prefeitura, mas colocou o filho Guilherme como vice. Ruyter fez uma análise das últimas eleições na cidade e mais de 88% dos votos do eleitorado são controlados pelos Coelho. Oswaldo é o fiel sucessor da Arena-PFL-DEM e ganhou uma concessão de televisão e uma rádio FM do falecido oligarca baiano, Antônio Magalhães, quando este foi o ministro das comunicações, quando o oligarca José Sarney era o presidente nomeado.
 
A máquina política funciona como uma empresa
 
A CODEVASF é dominada pelos Coelho desde a sua criação em 1974 – na região de Petrolina, onde estão implantas as políticas públicas do agronegócio, com commodities de exportação – manga, uva, goiaba- e a Miolo produz vinhos finos no Lago de Sobradinho, o maior da América Latina e que estão quase no volume morto. Mas ela é á responsável por programas de fomento em outras áreas, como sanidade, saúde e educação, e tem um orçamento de R$3,5 bi, que também foi cortado em 2015. O pesquisador da UFRN enfatiza em sua tese que a oligarquia tem uma máquina que funciona como uma empresa, com tentáculos em todas as áreas, desde a nomeação de funcionários públicos, até os cargos de confiança, que são indicados por políticos. Os escritórios dos membros da família Coelho funcionam permanentemente, independe de anos eleitorais.
 
Oswaldo Coelho ainda controla os chamados partidos nanicos na cidade, colocando em seus quadros filhos, sobrinhos, irmãos, primos e uma vastíssima clientela formada ao longo dos anos de poder tais como: seus empregados, ex-empregados, funcionários públicos de todos os escalões, bancários, sindicalistas e etc.
 
Sobrenome é um passaporte
 
Nilo Coelho analisava a contratação de funcionários públicos pessoalmente, tinha que passar pelo crivo dele.
 
“- Esses são os liberais brasileiros. Vivem de política e fazem dela a sua sobrevivência. Às vezes, esses jovens que são escolhidos para esta ‘missão tão nobre, que é a política demonstram não possuírem a mínima vocação para tal. Há casos em que alguns vivem só de renda dos negócios familiares, nunca se envolveram na sua administração, nenhuma experiência profissional, carregam consigo o sobrenome como um passaporte para o olimpo”, registra o pesquisador Ruyter Bezerra dos Santos.
 
Fernando Bezerra tem dois descentes na política – Fernando Coelho Filho é deputado federal e Miguel é deputado estadual. O Brasil carrega esse fardo das oligarquias, como uma praga secular e quando começa a ser desmantelada com políticas públicas, que dão poder aos brasileiros ,que nunca tiveram acesso a nada, sofre um ajuste neoliberal. Fernando Bezerra já tinha expressado seu papel de oligarca moderno, quando trouxe para o Brasil uma indústria italiana que produziu cisternas de PVC, consideradas mais baratas, que seriam doadas aos cidadãos do semiárido e das periferias de cidade, dando continuidade ao poder da oligarquia. Doação por voto é a equação.
 
Não suportam a independência dos sertanejos
 
Porque a indústria da seca, que na verdade é constituída pelas famílias tradicionais do nordeste como Sarney, Magalhães, Alves, Mendonça, Coelho e tantas outras não suporta a independência dos sertanejos, o cartão eletrônico do Bolsa Família, que as próprias crianças podem sacar o dinheiro e a entender que algo mudou na história. Os pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba – Flávia Ferreira Pires, Cristiane Rocha Falcão e Antonio Luiz da Silva- fizeram uma trabalho sobre a visão das crianças sobre o Bolsa Família em Catingueira, sertão do estado, com pouco mais de quatro mil habitantes, onde 62% recebem recurso do programa. As crianças de 6 a 8 anos, 9 a 10 anos e 11 e 12 anos desenharam, deram depoimentos e comentaram sobre a importância do programa. Os pesquisadores residiram nas casas dos entrevistados durante a pesquisa.
 
Ele é usado para comprar “o grosso” da alimentação, para quem nele a única renda, ou então mais frutas, legumes e outras coisas boas, como disse na redação de Sebastião de 11 anos:
 
“- O Bolsa Família é uma ajuda boa para a minha família e a minha educação. Traz para a minha casa uma grande alegria, nunca nos faltou nada e ainda deu para comprar a minha bicicleta e pagar as contas.”
 
A aluna Maiara, de sete anos, desenhou uma bolsa para retratar o Bolsa Família e fez a seguinte definição ao ser perguntada sobre o que era o programa:
 
“- É quando você está cheio de dinheiro e não pode faltar na escola”.
 
A oligarquia tem medo é do futuro, quando esses brasileiros assumirem o poder na região. 




Créditos da foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

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