Os procuradores que não trabalham como procuradores

Procuradores convocam publicamente uma marcha de silêncio pela morte de Alberto Nisman, escondendo todo o jogo político que há por trás das cortinas.

Martín Granovsky - Página/12 -
 na Carta Maior


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Na Argentina, os procuradores não comandam as investigações judiciais, tal como ocorre nos Estados Unidos. Mas a morte de Alberto Nisman colocou alguns personagens no primeiro plano da discussão política e concedeu a um grupo de veteranos do menemismo a fantasia de criar ao mesmo tempo uma corporação e um espírito de corpo. O mais audaz é o procurador da Câmara Federal portenha Germán Moldes, que ontem anunciou a existência de um crime sem denunciá-lo. “Vivi em uma época de medo e vejo que algumas das características dessa época, em que se jogavam os mortos pela cabeça todos os dias, estão lamentavelmente voltando”, disse à Rádio América. Foi sua forma de explicar que a marcha convocada por seu grupo para o dia 18 de março será em busca de “proteção”.


Moldes definiu essa época. Disse que falava do que acontecia “em meados dos anos 70”. No entanto, não deu detalhes sobre quem joga os mortos agora. Como a marcha é em homenagem a Nisman, pode-se supor que, para Moldes, Nisman é um dos mortos arremessados. É como se ele tivesse mudado a máscara colocada pela procuradora Viviana Fein e a morte já não fosse duvidosa. Os funcionários da justiça não têm só direito, mas obrigação de denunciar um suposto crime, e violam a lei se não o fazem.

A atitude da juíza Sandra Arroyo Salgado, ex-esposa de Nisman, teve outro fundamento. Estabeleceu por que queria ser querelante: em nome das filhas que teve com Nisman. O intendente de Tigre, Sergio Massa, não conseguiu ser querelante porque a Justiça não compreendeu em nome de quem ele o fazia.

Moldes fez um ato raro. Apareceu em público. Não esteve na sexta-feira para a foto na convocatória para a marcha realizada pelo procurador Guillermo Marijuán (“A marcha não é contra ninguém”) e seus colegas Carlos Stornelli, Carlos Rívolo, José María Campagnoli, Ricardo Saénz, além do procurador-geral número dois diante da Cassação, Raúl Plee.

Sáenz não evita as fotos e tem uma pertença gremial. É vice-presidente da Associação de Magistrados comandada por Ricardo Recondo, juiz da Câmara Civil e Comercial. Mas o líder do movimento é Moldes, que junto com Plee faz parte dos procuradores mais questionados em diferentes trechos do caso AMIA.

A trama do caso AMIA cruza como nenhuma outra com os serviços de inteligência, oficiais de polícia como Jorge “El Fino” Palacios, juízes e procuradores. Dois dos convocadores públicos da marcha do silêncio do dia 18, Plee e Moldes, foram protagonistas dos capítulos menos radiantes. No dia 19 de junho de 2013, o Página/12 publicou uma coluna de opinião de Paula Litvachky, diretora de Justiça e Segurança do Centro de Estudos Legais e Sociais. Tinha como título “Eu não acuso” e, com o jogo de palavras que invertia o “Eu acuso” de Emile Zola, a autora se referia não a ela, mas aos procuradores que deviam ter atuado, e não o fizeram. Litvachky escreveu que a audiência realizada na “Sala II da Câmara de Cassação para analisar a responsabilidade penal do ex-juiz Juan José Galeano ocorreu com mais de seis anos de atraso por ordem da Corte Suprema”. A advogada do CELS argumentou que “essa decisão deu razão à querela da Memória Ativa sobre a inação de alguns funcionários judiciais e os interesses subterrâneos de outros”. Um exemplo: “Sem explicação, o procurador de cassação Raúl Plee deixou de tocar a causa e a Câmara resistiu a fixar audiência até que o caso ficou em evidência. Ontem, o procurador Plee tornou a se ausentar”.

Outro dos procuradores, o ativo mas discreto Moldes, também aparece na coluna de Litvachky, que reivindica os querelantes da Memória Ativa. No processo tramitado pelo juiz Ariel Lijo, “diante do descumprimento de um grupo de imputados, a querela apelou da decisão, mas foi novamente abandonada pelos procuradores”. Litvachky afirmou que “quem devia levar a ação adiante consentiu nesse descumprimento sem diferenciar situações” e “observou que, como chefe da Unidade AMIA, Nisman “disse que o procurador da Câmara Germán Moldes deu a ordem de não apelar porque compartilhava dos fundamentos do juiz”. Segundo Litvachky, Nisman explicou que não havia apelado porque “carecia de autorização para fazê-lo por sua conta”, já que o procurador natural da causa era o Moldes.

A mudança que virá

Até agora, pelo menos, os procuradores não eram uma corporação, nem sequer um coletivo. Os procuradores, ao contrário dos juízes, não têm espírito de corpo. Será que agora alguns deles querem criar um corpo para colocar nele a marca de seu espírito? Ou será que disputam a cabeça de um corpo que politicamente existirá quando se aplicar o novo Código Processual Penal?

A realidade não apenas produziu realidades impactantes, como uma denúncia do procurador Nisman e sua morte poucos dias depois. Antes, 2014 havia terminado com o novo Código Processual Penal sancionado pelo Congresso e promulgado pelo Poder Executivo. Essa perspectiva teria servido de motivação para ocupar espaços políticos de antemão? Para além do que vier, a verdade é que hoje o atual Código Processual Penal define que o juiz é quem inicia a instrução. Eventualmente, delega essa tarefa ao procurador e pode recuperá-la quando quiser. Inclusive, o Código Processual Penal vigente desde 1991 mudou o caráter inquisidor e dividiu o processo penal em dois, uma parte de instrução e outra de avaliação em juízo, em que um tribunal, por meio da oralidade, estabelece e determina a responsabilidade de cada um. O papel do procurador, quando o juiz assim delega, é cumprir com a Emenda Miranda dos Estados Unidos, para evitar que o juiz ou o procurador prejulguem sobre um fato, o transformem em delito ou dele retirem seu aspecto criminoso, e logo adaptem o resto do processo penal a esse interesse prévio.

Em 2016, haverá novas designações, novas estruturas e novas questões orçamentárias quando começar a vigorar o novo Código Processual Penal, promulgado em 2014. A discussão não é o espírito da Emenda Miranda, que ninguém critica, pelo menos em público, mas sim a administração concreta dos novos protocolos de atuação.

A cabeça do Poder Judiciário é a Corte Suprema, hoje com Ricardo Lorenzetti na presidência. A defensora geral é Stella Maris Martínez. A procuradora, eleita em 2012, numa indicação de Cristina Fernández de Kirchner com o acordo do Senado, é Alejandra Gils Carbó.

Tanto Martínez como Gils Carbó têm participação na comissão diretora da Justiça Legítima, uma associação que, além de juízas como sua presidenta María Laura Garrigós de Rébori ou do juiz de Cassação Penal Alejandro Slokar, abriga muitos procuradores. Entre eles, figuram Félix Crous, Jorge Auat, Javier De Luca, o procurador-geral e chefe da unidade de assistência para causas por violações aos direitos humanos Alejandro Alagia; e Julián Axat, diretor da Atajo, sigla de Agências Territoriais de Acesso à Justiça, um organismo da Procuradoria com presença nas cidades. Na missão da Justiça Legítima, que pode ser lida em seu site, estão a promoção de “um sistema de justiça mais plural e independente, tanto dos outros poderes do Estado como dos poderes fáticos”, e o fomento à transparência tanto nos processos de decisão dos juízes como no ingresso e na promoção do serviço da justiça. Também há lugar para o Ministério Público. Diz-se: “Promover a autonomia da defesa pública e do Ministério Público em todas as jurisdições do país”.

O grupo Moldes

Se a lei de implementação do novo Código Processual sair a tempo, mudará o foro penal porque os procuradores serão o braço impulsionador dos processos. Cada procurador, segundo a Constituição, goza de “imunidades funcionais e intangibilidade de remunerações”. Cada procurador faz hoje seu trabalho e o fará com maior amplitude quando imperar o novo regime. Um dos fenômenos contraditórios desse novo fenômeno é que os procuradores que convocam a marcha do dia 18 parecem procurar uma presença corporativa, mas não procuram atuar em equipe nas causas em que intervêm. Procuradorias feudalizadas e, simultaneamente, política em grupo para influir dentro e fora do Ministério Público? Será esse o modelo buscado pelo grupo Moldes? Se for assim, poderiam aprofundar as rispidezes com a linha institucional impulsionada pela procuradora, baseada em unidades institucionais como as de lesa-humanidade, criminalidade econômica, gênero e narco criminalidade, um maior trabalho em equipe e coordenação com as províncias. “Sem esse critério, teria sido impossível deter os chefes de polícia vinculados aos crimes de narcotráfico em Córdoba e em Santa Fé”, argumenta Gils Carbó, que acostuma se mostrar preocupada por uma sociedade que ficará inerme se os procuradores trabalharem sem apoio e controle mútuos.

O caso da procuradora Viviana Fein, nos últimos dias, abriu um dilema. Está a cargo de investigar uma morte de alta comoção internacional, como a de Nisman, mas preferiu trabalhar sozinha e com sua equipe de sempre. Por sua vez, a Procuradoria ofereceu mais gente, mas não quis insistir para não despertar nem uma remota suspeita de pressão sobre Fein. É uma armadilha. Se, ao não ampliar a equipe, Fein não for suficiente, a causa por morte duvidosa de Nisman poderia ter uma dinâmica mais lenta do que o esperado. E se a equipe chegasse a ser maior, a Procuradoria poderia ser acusada de intervencionista por conta do estereótipo que apresenta Gils Carbó como uma torre entre as peças que o xadrez presidencial move.

As diferentes partes em jogo experimentaram um pequeno exemplo da armadilha durante a última semana quando Fein deu – involuntariamente – informações equivocadas à Procuradoria sobre os já famosos apagadores encontrados no cesto de lixo de Nisman. Os papeis amassados continham ordens para começar um processo que levaria à detenção da presidenta e do chanceler Héctor Timerman. De qualquer forma, Fein não rompe com nenhum protocolo quando fala em público: é sua investigação e até os erros estão dentro de seu direito. A novidade é a irrupção de Moldes com sua rebelião contra a Lei Orgânica do Ministério Público por não ter atuado sem denúncia concreta, apesar de ter explicitado que alguém está cometendo crimes como o de “arremessar mortos”.





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