CPI das universidades em São Paulo expõe violência extrema e omissão

Comissão da Assembleia Legislativa paulista procura soluções para que práticas muitas vezes identificadas como crimes comuns deixem de ser 'tradição'

por Eduardo Maretti, da RBA publicado 24/01/2015 10:52

MAURÍCIO G. DE SOUZA/ALESP
CPI_Adriano DIogo
Presidente da comissão da Alesp, Adriano Diogo, durante sessão do colegiado instalado há 40 dias
São Paulo – A CPI instalada na Assembleia Legislativa de São Paulo para apurar violência e desrespeito aos direitos humanos, presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT), completou esta semana 13 sessões e 40 dias de funcionamento com polêmicas, depoimentos contundentes, denúncias e uma constatação definitiva: a tradição de trote nas instituições de ensino, públicas e privadas, que se prolonga pelas décadas no país e vitima legiões de estudantes chamados “calouros”, continua vigorando por omissão das universidades, sindicâncias internas burocráticas e sem efetividade jurídica e, nos casos mais graves, alguns dos quais redundam em sérias consequências e até em morte, por falta de investigações bem feitas da polícia.
“O que queremos saber (com a CPI) é se as pessoas estão dispostas a mudar essa realidade, que eu costumo chamar de 'ovo da serpente'. Tem núcleos na sociedade, nichos conservadores, que fabricam essas anormalidades”, resume Diogo.

Certas práticas consideradas historicamente normais e integradoras das comunidades, como o aparentemente ingênuo corte de cabelo, são agressões passíveis de ser enquadradas como crimes que, se praticados em um ambiente público, como a rua, podem levar o agressor à cadeia.
“Se você estiver na rua e passar a mão num moça que não conhece, você vai preso imediatamente. Se eu raspar o cabelo de uma pessoa ou obrigar alguém a se alcoolizar, a mesma coisa. Isso é crime, lesão corporal dolosa e ponto final”, diz Martim de Almeida Sampaio, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção São Paulo. “(O trote) pode ser considerado tortura em determinados casos. Já vi casos de amarrarem a pessoa. É abominável, isso é coisa do século 19, 18. É uma imbecilidade. Nem corte de cabelo deve ser admitido.”
O professor Antonio Ribeiro de Almeida Júnior, do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, em Piracicaba, em sessão da quarta-feira (21) da CPI, realizou pesquisas segundo as quais até mesmo o corte de cabelo, que boa parte da comunidade acadêmica considera aceitável, pode ser bastante violento, moral ou fisicamente. “As pesquisas mostram que, aquilo que é brincadeira para uns, é violência para outros. Ao contrário do que dizem, ele não integra.”
Há diversos relatos em que o calouro resiste ao tradicional corte de cabelo e acaba sendo vítima de tesouradas. Pelo menos um desses casos resultou em morte, e se tornou mais chocante porque a vítima nem sequer era “calouro”, e por isso resistiu.
Casos emblemáticos como o do estudante Edison Tsung Chi Hsueh, que morreu afogado em 22 de fevereiro de 1999, na piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, clube dos alunos da Faculdade de Medicina da USP, terminam sem punição. Os quatro acusados de participar do trote que levaram o rapaz à morte foram absolvidos em julgamento do Supremo Tribunal Federal de 2013: Frederico Carlos Jaña Neto, Ari de Azevedo Marques Neto, Guilherme Novita Garcia e Luís Eduardo Passarelli Tirico. Segundo o advogado da OAB-SP, um dos principais motivos são as investigações mal feitas. “Quando as provas são colhidas na investigação policial de forma errada, precária, o julgamento acaba sendo levado à absolvição.”
“É um absurdo que, depois de 15 anos, ainda estejamos discutindo isso, os trotes violentos”, afirmou o professor da Esalq na CPI.
Mas por que, afinal, essas atrocidades continuam? Co-autor do livro Universidade – preconceitos e trote (ed. Saraiva), o docente aponta razões estruturais e organismos de poder que sustentam a tradição do trote e inibem as denúncias dos jovens calouros por medo e por não se sentirem acolhidos. Segundo Almeida, há razões para esse temor. “Os que fazem o chamado ‘pedágio’ nos semáforos, por exemplo, são ‘soldados rasos’. Os ‘generais’ muitas vezes são alunos veteranos, professores e até dirigentes. São pessoas sadomasoquistas com sérios problemas de personalidade”, disse Almeida. “Mas não me cabe dar nomes, cabe à polícia e ao Ministério Público.”
A falta de punição, na opinião do professor, decorre, entre muitos fatores, da própria estrutura de poder que, segundo ele, protege os agressores. “No final, só é punido quem confessa. Mas eu me pergunto: a pessoa é punida por confessar ou por violar a lei do silêncio?”
Em suas pesquisas, o professor da Esalq constatou que associações atléticas e outras, que organizam as festas em que são aplicados os trotes, pressionam dirigentes das universidades a dar recursos e espaços para esses eventos ritualísticos.
Para ele, a omissão das autoridades universitárias é exemplificada com clareza por um fato: “Alunos que são reprovados durante seu percurso na faculdade, posteriormente não conseguem bolsa na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Mas os agressores, que praticam todo tipo de trote, têm acesso às bolsas.”
Marcos Ackerman, professor titular do Departamento de Prática em Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP, acredita que o trote faz parte do “reino do medo e tem uma relação com a formação de redes de poder” a partir das universidades e daí para a sociedade, e vice-versa.

Medidas na USP

A CPI da Assembleia Legislativa paulista ouviu, também na quarta-feira, o reitor da Universidade de São Paulo, Marco Antônio Zago, uma das autoridades mais esperadas no colegiado. No quesito trote, a Faculdade de Medicina da USP, escola pública que deveria formar médicos comprometidos com a cidadania, é uma das mais identificadas com a violência e a crueldade.
Cientista reconhecido, ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre 2007 e 2010, no segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o reitor da USP deixou claramente transparecer seu desconforto em ter de atuar em seara tão distante do conhecimento e da ciência. “A universidade está devendo ainda medidas para resolver (o problema do trote), e garanto que vou fazer esforço para tomar as medidas necessárias”, afirmou Zago na CPI. “Mas há muitas coisas aqui denunciadas que são crimes comuns e precisariam ser punidos pela Justiça. A universidade tem instrumentos limitados”, reconheceu. “Embora eu e a universidade precisemos fazer este papel, de punir os desvios que ocorram, eu gostaria de dedicar minha atenção principal à formação, à educação. Porque é para isso que o estado transfere recursos para a universidade.”
Mesmo assim, Zago, que tomou posse em janeiro de 2014, garantiu que está tomando medidas para coibir os trotes, as quais acredita que trarão resultados. Uma delas é uma resolução aprovada no Conselho do campus da Cidade Universitária que proibiu festas com consumo de álcool, no dia 17 de dezembro passado. Essas festas são consideradas focos de violência e abusos de toda espécie, inclusive com a presença de pessoas estranhas à rotina dos campi.
Outra medida é a delegação à Comissão de Direitos Humanos da universidade (CDH-USP) de tarefas de supervisora sobre todos os processos relativos aos trotes.
A CDH é presidida pelo jurista José Gregori e tem em sua composição pessoas “de grande relevo”, diz Zago, como o também jurista Celso Lafer, a ouvidora da USP, Maria Hermínia Tavares de Almeida, entre outros. “Pela própria característica dessas pessoas, fica claro que não se está criando uma comissão subordinada à vontade do reitor ou dos diretores”, avalia. “A CDH é a responsável pela supervisão de todas as ações e respostas dos dirigentes diante de denúncias ou suspeitas.”
Alunos de movimentos sociais cobraram de Zago mais diálogo e a Frente Feminista apresentou a ele uma lista de medidas que considera simples de serem adotadas e de baixo custo, como mais iluminação no campus, sistematização dos casos de violência pela Ouvidoria da universidade, entre outras.
Zago prometeu estabelecer diálogo imediato, por meio da procuradora-geral da USP, Paula Dallari, com movimentos sociais. Disse também que a CDH terá a sua disposição, além da procuradoria-geral, apoio e estrutura de diversos órgãos da universidade para poder atuar, como a Comissão de Ética, a Ouvidoria e a Superintendência de Tecnologia de Informações.
Ele prometeu também reabrir sindicâncias de casos arquivados, como o de uma menina que há 12 anos, numa festa de alunos da Esalq, em Piracicaba, foi embriagada e abusada por oito alunos. O caso se tornou um dos mais simbólicos da violência sofrida por alunos recém-chegados à universidade e até hoje não foi investigado.
Prefeito do campus na época, em 2002, o professor e engenheiro Marcos Vinícius Folegatti depôs na CPI no dia 21 e alegou que “jamais” tomou conhecimento detalhadamente dos fatos, que a sindicância sobre o caso não teve desdobramentos adequados porque “em momento nenhum a moça disse que foi estuprada” e que “a menina só pediu para que fossem tiradas as informações da internet”. Além da violência, a jovem foi publicamente humilhada pela web. Folegatti alegou ainda que, como prefeito do campus e docente, não tinha poder para punir.
"Ele foi se afundando sozinho (no depoimento). Não sabia que era estupro. Não sabia que eram oito caras. Não sabia dos posts que foram feitos na internet. Não sabia de nada?", questionou Adriano Diogo, sobre o depoimento de Folegatti. "Em Piracicaba (na Esalq) os caras continuam fazendo trotes e pondo na internet."
Muitos casos não têm consequências jurídicas de fato porque seus processos são formalmente mal conduzidos. O deputado Bruno Covas (PSDB), membro da CPI, disse ser fundamental que esses erros formais sejam evitados para que os casos tenham prosseguimento. Ele defendeu o direito de defesa de acusados sem prova e o devido processo legal, princípio constitucional. “É melhor um culpado solto do que um inocente preso”, declarou Covas.
Para Felipe Scalisa, aluno do quarto ano da Faculdade de Medicina da USP, que tem participado das audiências, “os resultados da CPI vão depender muito das próximas audiências, quando estão previstas as presenças dos agressores”. Ele espera que, ao final dos trabalhos da comissão, “fique evidente como as práticas são feitas e que a CPI consiga pelo menos denominar alguns agressores”.
Scalisa diz ainda que a política da reitoria é ainda “um pouco tímida”. “Acho também que os deputados não podem perder a oportunidade que têm, por exemplo não podem abrir brechas na condução dos depoimentos que permitam que os interrogados fujam das perguntas.”

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